PRAÇA TEXTUAL


O Palco é a Rua – Investigando Políticas Culturais

“O Palco é a Rua – Investigando Políticas Culturais” é uma pesquisa sobre músicos de rua e a política pública de cultura da Cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco. Neste novo trabalho, um documentário e um texto trazem reflexões sobre conceitos de política cultural historicamente aplicados no Brasil e no Recife ao lado de falas de diversos atores sociais: músicos dos espaços populares, pesquisadores, professores, representantes do legislativo pernambucano, do Sistema de Incentivo à Cultura do Recife e do Conselho de Música de Pernambuco. Todos esses personagens compõem ricas percepções sobre a música como uma linguagem de vivência da cidade e sobre como nossa política pública cultural precisa estar atenta às perspectivas simbólicas e profissionais que tais artistas ativam em cooperação e redes de participação. https://youtu.be/nVs3WpVO2Pk O documentário “O Palco é a Rua – Investigando Políticas Culturais” (Dir. Guilherme Patriota e Laura Sousa, 2023, 45’41”) pode ser conferido no link presente nesta publicação ou diretamente no YouTube do O Palco é a Rua e da Theia Produtores Associados, com tradução/interpretação em LIBRAS para pessoas surdas ou com deficiências auditivas. Aprofundando a discussão, o texto homônimo, de caráter sociológico analítico, também de autoria de Laura Sousa e Guilherme Patriota, pode ser solicitado em formato PDF pelo e-mail theiaprodutores@gmail.com e pelas redes @opalcoearua e @theiaprodutores e encontra-se no final desta publicação e pode ser baixado por você mesmo(a). Todo o conteúdo seguirá disponível gratuitamente para estudantes, artistas, pesquisadores, educadores e interessados em geral. Assim, procuramos contribuir, também, com o objetivo de levantar e discutir possíveis estratégias de inserção de musicistas que atuam nas ruas nas ações/pautas democráticas e participativas incorporadas na institucionalização da política cultural empreendida no Recife. Pretendemos, portanto, entender como a lógica do nosso sistema público de cultura enxerga, ou ignora, a presença da atividade musical espontânea nas ruas, transportes e outros territórios coletivos, considerando os fortes indícios de que tal prática artística é invisibilizada pelas metas e programas de reconhecimento e incentivo cultural no âmbito municipal específico. https://youtu.be/BL791jV1JYE Realização: Theia Produtores Associados Pesquisa, direção, produção, roteiro e textos: Laura Sousa e Guilherme Patriota Audiovisual: Theia Produtores Associados e Bliv Filmes Identidade visual: Adeildo Leite Acessibilidade: Centrae Acessibilidade Administração e contabilidade: Duocont Contabilidade Incentivo: Fundo de Incentivo à Cultura – Sistema de Incentivo à Cultura da Cidade do Recife (SIC). Artigo-O-PALCO-E-A-RUA-Investigando-Politicas-CulturaisBaixar


Festival O Palco é a Rua – 2022

O Festival O Palco é a Rua é o primeiro a apresentar uma programação exclusiva com músicos e bandas que se apresentam em ruas, praças, feiras/mercados, pontos turísticos e transportes coletivos de cidades pernambucanas e de outros estados e países sem alterar suas formas de atuar e interagir com o público. A força e a multiplicidade musical das ruas ganham espaço e divulgação para o fortalecimento do livre contato entre artistas e o público, partilhando o direito ao acesso democrático à arte. Realizado pela Theia Produtores Associados, com Curadoria de Guilherme Patriota e Laura Sousa, o Festival O Palco é a Rua aconteceu no dia 12 de Outubro de 2022, das 10h às 18h, no Boulevard Av. Rio Branco no Bairro do Recife movimentado por 15 atrações. Com incentivo da Prefeitura do Recife e da Fundação de Cultura do Recife, por meio do edital Recife Virado na Cultura, o Festival ocupou quatro pontos específicos da Av. Rio Branco que é destinada exclusivamente aos pedestres. Assim, potentes representantes da música nas ruas levaram suas produções para um importante ponto turístico recifense em uma singular localização para nossas expressões culturais. Todas e todos os artistas que estão na programação adotam, em seus cotidianos, as ruas e demais espaços públicos como locais para apresentar repertórios autorais, ganharem maior experiência artística e para obterem renda total ou parcial em suas trajetórias profissionais. https://youtu.be/j_JEEW8BcsM Este projeto é um desdobramento da pesquisa "O Palco é a Rua - A Música nos Espaços Populares" Theia Produtores Associados (Laura Sousa e Guilherme Patriota)


Manifesto O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares

Este manifesto traz ao centro as vozes daqueles que habitam as regiões centrais e periféricas das cidades, ruas, praças, parques, transportes coletivos, feiras e demais espaços populares, trazendo música, interação e performance para os transeuntes no Estado de Pernambuco. Muitas vezes marginalizados, os músicos e musicistas das ruas, espaços populares, são símbolos da efervescência cultural que não exclusivamente obedecem ao status quo, porém conduzem suas trincheiras de forma lúdica, abraçando relações afetivas, comerciais e criativas com todos os passantes e ou habitantes das ruas. No Brasil das diferenças, das incompreensões, do descaso corriqueiro com aqueles que não obedecem as leis e regras gerais de uma herança viva do patriarcado econômico estrutural, ouvir e dialogar com estes artistas é um estado de manifesto. A vida livre e complicada, a educação desestruturada, a economia das exceções não é uma situação exclusiva dos músicos/musicistas das ruas, é uma realidade humana no ano de 2021. No Manifesto “O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares”, seus diretores adotam o tom do ouvir e dialogar, compreendendo que nas situações de rua a frase mais audiente é: A polifonia é livre! https://youtu.be/4ENOqIzfzyg Direção, pesquisa, produção, texto e roteiro: Laura Sousa e Guilherme Patriota; Produção executiva: Theia Produtores Associados (Guilherme Patriota e Laura Sousa); Fotografia, edição e finalização: Guilherme Patriota; Produtores Locais: Maércio José, Lucivan Max e Thiago Santos; Áudio: Laura Sousa, Guilherme Patriota, Maércio José, Lucivan Max, Thiago Santos e Wagner Santos; Narração: Bruno Lins; Identidade Visual: Adeildo Leite; Assessoria de imprensa: Luma Araújo (Mexe Mexe Comunicação); Acessibilidade comunicacional: Centrae Acessibilidade Comunicacional; Realização: Theia Produtores Associados; Incentivo: Funcultura da Música, Governo de Pernambuco, Secult-PE e Fundarpe. Recife, Pernambuco, Brasil, Junho de 2021. https://youtu.be/FAr6d4r3qvk Versão Acessível (LIBRAS, LSE e Audiodescrição) Siga @opalcoearua e @theiaprodutores em todas as redes.


Música e amizade – movimentos das ruas

Em nossa pesquisa sobre musicistas nos espaços públicos, tem se evidenciado a importância de incluir, em nossos trajetos, os bairros e as ruas marcados pela tradição do comércio popular nas cidades visitadas. Esses são territórios recorrentes em nossos registros no Estado de Pernambuco e não seria diferente em Caruaru (Agreste Central). Nas proximidades do merco zero do município onde, por muito tempo, a sua famosa feira acontecia, ruas largas e estreitas vão compondo um complexo de lojas, mercados e pequenos comércios com os mais variados produtos. Justamente neste entorno, mais especificamente na rua Vinício Fernandes Lima, mais conhecida como Beco do Antigo Mercado de Farinha, pudemos conhecer a atuação de Vitória do Pife, Joyce Noelly, Maria Izadora e Ythalla Maraysa. Tocando pífano, rabeca, zabumba, triângulo, pandeiro e pequenos instrumentos percussivos, as quatro artistas vivem uma fluida e cotidiana relação com a musicalidade popular do Agreste pernambucano. A amizade é o laço social que faz circular o interesse pela música entre elas e que impulsiona o profundo convívio com mestres e mestras que são referências na localidade. https://youtu.be/hM-5KNM96ug No circuito caruaruense, como já mencionamos em textos anteriores, pudemos perceber que jovens artistas encontram nos ritmos tradicionais o contato com instrumentos acessíveis e com práticas de ensino/aprendizagem que acontecem por meio do diálogo, da observação, da dança e participação que afloram da cultura popular. Portanto, em um contexto de sujeitos que se abrem para as artes nas ruas, nossas entrevistadas trazem a música ora como ação profissional, como no caso de Vitória do Pife, ora como forma de enriquecimento pessoal, como no caso de Joyce Noelly. Independente das motivações individuais, o reconhecimento das ruas de Caruaru como potentes “palcos” incentiva as quatro amigas a transitarem pela variedade de expressões e linguagens que se fazem presentes. No cenário do mencionado Beco do Antigo Mercado de Farinha, as tocadoras se localizam próximas a um alto muro, de frente para algumas lojas e para o público de transeuntes. No chão, capas e estojos dos instrumentos servem para apoiá-los e para recolher as contribuições espontâneas dos espectadores. Esse espaço, ao mesmo tempo que torna impossível ignorar a apresentação, também oferece uma propagação do som que favorece a atuação do quarteto que não utiliza microfones, caixas e outros equipamentos que amplifiquem o alcance sonoro. Com este acolhimento funcional do beco, as artistas vão definindo o repertório enquanto tocam. Muitas vezes, elas mudam a música a ser executada com uma simples troca de olhares e, assim, os instrumentos também vão sendo compartilhados e todas vão buscando versatilidade e, com a mesma naturalidade, vão incorporando o Forró de Rabeca e o Coco entre os ritmos escolhidos. Vitória do Pife, como o nome artístico já revela, tem construído uma trajetória como tocadora de pífano, sendo, também, uma incentivadora do instrumento entre os mais jovens na cidade (ver, por exemplo, depoimento de Carlos dos Ventos no conteúdo “Vai no Teu Tempo” presente neste site). Natural de Caruaru, Vitória iniciou suas atividades após comprar o primeiro pífano na oficina do mestre João do Pífano. Um de seus primeiros palcos urbanos foi um dos semáforos da cidade, onde tocou junto a amigos que são malabaristas. Contudo, a ida à rua para se apresentar não foi uma escolha completamente consciente quanto aos seus resultados. “Eu comecei bem espontaneamente, sem nenhuma pretensão. Daí, tinha amigos que trabalhavam no semáforo, eu andava com eles e, certo dia, eles falaram ‘pô, entra aí, vamo (sic) tocar também’ e, aí, foi rolando”. Mesmo com a aparente naturalidade da descoberta do espaço público para suas performances, Vitória menciona que, logo no início, o estigma negativo que se assenta culturalmente na arte de rua é um desafio a ser enfrentado. Mesmo como tocadora de um instrumento tão conhecido na região, ela pode sentir diferentes reações à sua proposta de atuação e às de seus amigos. “É massa e, ao mesmo tempo, é difícil também. Na primeira vez que eu fui entrar, pra tocar no semáforo, eu fiquei com muito medo porque é intimidador, né? Ninguém se vê ali, naquele lugar. A mesma coisa é na rua, também. Às vezes, tem um olhar estranho, alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, também é muito massa de troca; de uma pessoa olhar para você e sair dançando. Mesmo que não dê nenhum dinheiro, mas rola sempre essa troca, falar com a pessoa e tal”. Essa fala nos parece bem reveladora do quanto ainda os espaços públicos precisam ser defendidos como territórios artísticos mesmo entre agentes sociais que vivem da música, do circo, da dança, do teatro, da performance e tantas outras linguagens. Ao afirmar que “ninguém se vê ali, naquele lugar”, Vitória chama atenção para o fato de que a noção de trabalhar e viver da arte ainda está arraigada aos espaços institucionais e às grandes cadeias técnicas de montagem e exibição. Em sua concepção, a ideia de se profissionalizar nos espaços populares sofre o entrave imposto pelo senso comum que não atribui à esta atividade uma forma respeitável de obter retorno financeiro. Por outro lado, o objetivo de ganhar desenvoltura com o instrumento e com o público é, muitas vezes, alcançado nas calçadas, feiras, semáforos, etc. As diferentes histórias de vida das quatro amigas revelam, também, estratégias criativas de engajamento em projetos sociais utilizando a música como forma de interação. Maria Izadora, natural de Arcoverde (PE) e integrante do coletivo “Riso da Terra” de agroecologia, cultura e educação popular, nos conta, por exemplo, como a música nos espaços públicos se tornou uma prática ligada aos seus objetivos sociais: “Eu participo de um coletivo, em Arcoverde, chamado “Riso da Terra” e a gente fazia a xepa, às quartas-feiras, e a gente trocava música, cultura e arte em troca de alimentos da feira que, geralmente, são desperdiçados também, né? Aí, eu fui aprendendo. Meu primeiro instrumento foi o ganzá, o ganzá maior. E foi uma das primeiras interações que eu tive com o público...porque ir pra feira cantar esperando...não esperando algo em troca, mas dando a música e sabendo que isso é um tipo de troca”. A música, dentro da narrativa de Izadora, faz parte de uma proposta de diálogo que procurava, também, despertar a consciência dos próprios feirantes sobre a importância de colaborar com o coletivo e, ao mesmo tempo, sobre o entendimento da própria arte popular como um tipo de troca que pertence às vivências e economias que partilhamos nas ruas. Esse é um contexto que promove mútuas interferências entre organização social colaborativa, a música nos espaços populares e a espontaneidade das amizades como forma de aprendizado; desdobrando-se em diferentes cidades, como podemos perceber na trajetória de Joyce Noelly. Natural de São Caetano (PE), ela é cozinheira e vive há mais de sete anos em Caruaru. A música não se mistura profundamente com sua principal profissão, mas se destacou como um interesse particular. “Sempre gostei de cantar, sempre gostei de música, mas não tive muito...não é que eu não tive muito acesso, mas eu acho que isso não estava muito vivo. Não sei explicar. Lá em São Caetano, tem a Fundação de Música e Vida que é muito forte, é um centro de formação musical popular, mas eu não tinha acesso por várias questões. Então, quando eu vim pra Caruaru (...), que tem essa movimentação popular tão forte, eu comecei a ter acesso. Comecei a ter amizade com pessoas que faziam música e isso foi quebrando as barreiras, sabe? Porque sempre teve uma barreira muito grande ou, até então, tinha uma barreira muito grande entre a música e eu; quem fazia música e eu que só consumia. Isso foi se quebrando aqui em Caruaru. Pelo movimento da Estação, pelo movimento do Pife, pelas bandas alternativas, pelo movimento da rua. Depois, eu fui estudar agroecologia lá em Glória do Goitá. Então, eu conheci um pouco do movimento cultural da Zona da Mata, do Cavalo Marinho, descobri a rabeca e me interessei muito”. Valorizando o cenário cultural da cidade, Joyce Noelly menciona que suas companheiras artísticas já tocavam alguns instrumentos e destaca o papel de Vitória do Pife como incentivadora para que todas perdessem o medo e arriscassem a interação com o público. A realização deste objetivo é marcada pela perda da timidez e dos receios porque, como já afirmamos em conteúdos anteriores, o artista de rua é criador e receptor de uma situação socializada sem regras pré-estabelecidas e sem limites que separem o lugar de ocupação do artista e o lugar de ocupação do espectador. Essa constituição diária de circunstâncias para a música e para o retorno financeiro, muitas vezes, se dá como uma quebra em relação à dinâmica convencional de outras atividades acumuladas; principalmente para quem não consegue sobreviver exclusivamente da rua. Sob essa perspectiva, Joyce esclarece que aquela ação musical sempre a faz lembrar da conotação de liberdade que precisa ser vivida e conhecida em suas peculiaridades. Contudo, quando questionada sobre como observa a situação das artes nos espaços públicos do país, sua colocação é crítica e, ao mesmo tempo, motivadora de reações: “O cerco está, cada vez, se fechando mais. Porque a galera marginaliza. (...) a galera acha que se você está na rua fazendo música é porque você não tem o que fazer, você não está trabalhando e marginaliza. Eu já vi casos muito fortes de repressão, ainda não passei por nenhum e espero não passar, mas acho que isso está cada vez mais comum. A desvalorização está cada vez maior, mas eu acho que sempre que tem um movimento forte em algo, como essa repressão está cada vez mais forte, o movimento contrário também é cada vez mais forte. Então, a libertação e a luta pela liberdade, pela arte também se fortalece, mas a muito custo”. Nesta colocação, o termo “galera” pode ser atribuído, também, a distintas instituições que impõem uma visão autoritária e, muitas vezes, distorcida sobre a ação musical nos espaços populares. Estamos falando, por exemplo, dos órgãos de segurança e fiscalização, das secretarias de cultura que não dialogam com os artistas das ruas, do esfacelamento do Ministério da Cultura que se tornou uma secretaria ligada ao Ministério do Turismo e estamos falando, também, do universo do trabalho como uma institucionalidade social que recepciona de forma limitada os fazeres artísticos e culturais. O cotidiano musical, no entanto, é vivenciado profundamente a partir dos saberes e aprendizados muito parecidos com os modos da cultura popular, ou seja, a vivência do(a) brincante. Esse sentimento festivo e multidisciplinar é colocado por Ythalla Maraysa em sua explicação sobre como a música entrou em sua vida: “A música, na minha vida, ela...assim, desde cedo, eu tive muita influência da minha mãe na música, mas com um instrumento foi a partir de 2017; que eu conheci vários amigos que tocavam instrumentos e que acabei me soltando e o pessoal dizia ‘pega um instrumento, pega outro instrumento’, aí eu acabei pegando e brincando. Nessa brincadeira, sabe? Foi mais uma brincadeira. E, hoje em dia, também estou nessa brincadeira não de uma forma profissional, porque eu sou estudante do curso de design e fotógrafa. Aí, eu entro mais, assim, pra brincar mesmo. Eu gosto muito dessa coisa da rua e de experienciar sons, né? As meninas me chamaram e eu acabei vindo brincar com elas, eu sempre venho aqui tocar com elas na rua”. Podemos entender a ideia da “brincadeira” muito ligada à de “liberdade”, mencionada por Joyce Noelly, mas, sobretudo, ativada pela amizade como meio de interação e abertura de oportunidades. O prazer na dança, na troca de instrumentos, nas formas de acompanhar o compasso e as risadas quando alguma tocadora comete um erro ou esquece a canção, tudo isso se sobressai na sintonia afetuosa que as quatro colocam em movimento. “É uma experiência bem diferente porque é tudo muito novo, porque estão passando muitas pessoas e os sons mesmo lhe estimulam. Sensorial, né? E você fica mais solto, você não fica com tanta vergonha. Nos primeiros dias, você fica um pouco com vergonha, mas depois você se solta. É como se fosse uma escola, a rua é uma escola. Pra mim, eu vejo assim. Para aprender os instrumentos”. Por meio desta potência das ruas de Caruaru vistas como uma escola popular, quatro jovens mulheres reverberam a transmissão do saber musical, a representatividade feminina e as relações entre ação social organizada/coletiva e a arte como práticas efetivas para trocas solidárias e participativas. BOA LEITURA GOFFMAN, E. “Ritual de interação: ensaio sobre o comportamento face a face”. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. MOREIRA, Fayga; BARROS, José Márcio. “Diversidade e identidades: fronteiras e tensões culturais no espaço urbano”. Políticas Culturais em Revista, 2(2), p. 50 – 59, 2009.


Olegário Lucena – Improviso e performance

Nossa passagem pela cidade de Caruaru (PE) também foi marcada pelos encontros com artistas da música que fazem dos espaços populares seus territórios de experimentação para composições autorais e para interessantes propostas de interação com transeuntes. Abrindo essas possibilidades de observação e vivência, na tarde do dia 13 de novembro de 2019, pudemos conhecer a atuação do músico Olegário Lucena que, na calçada da avenida Oswaldo Cruz, executou seu processo criativo relacionando improviso e performance em um instigante entrelaçamento entre Rock, uma pegada de Blues e algumas referências regionais. Nascido em Taquaritinga do Norte, também no Agreste pernambucano, Olegário está há, mais ou menos, quinze anos envolvido em distintos circuitos de bandas e festivais independentes do Estado. Possui história de vida e relações fortes em Caruaru e, também, em Santa Cruz do Capibaribe, cidades onde o aprendizado da música e as amizades, ao lado da transformação de produção por meio da Internet, foram indicando caminhos e oportunidades para inserções no mundo da arte. https://youtu.be/QAfLhCkfP60 Já mencionamos, em textos anteriores, o quanto os músicos das ruas precisam tecer uma rede de apoio e de colaboradores para ocupar os espaços urbanos com seus trabalhos. Os acordos com comerciantes do entorno, por exemplo, são fundamentais para obter o mínimo de estrutura e manter uma boa convivência. No caso específico de Olegário, a relação de camaradagem com o dono da loja Nova Music, de instrumentos e equipamentos musicais, garante o acesso à fonte de energia onde o artista pode ligar todo o seu aparato rapidamente organizado, por ele mesmo, na calçada em frente à galeria comercial. No referido cenário, são distribuídos cabos, instrumentos, caixa de som, pedais e o case da guitarra que fica aberto para receber as eventuais colaborações em dinheiro. Toda a movimentação de autoprodução é muito intensa e dá uma prévia da atitude musical de Olegário nesse trabalho solo. Sem esperar muito para começar a tirar um som, o músico desenvolve bases melódicas com a guitarra e utiliza o loop station como ferramenta de ampliação de suas possibilidades. A partir daí, sua improvisação vai ganhando força ao lado de sua postura corporal que revela todo o seu envolvimento com a ação e com os passantes. Dentro desse constante jogo de criação, os pedais vão sendo acionados para ativar efeitos e o estabelecimento de novas bases para o improviso. Não demora muito, algumas pessoas começam a registrar a apresentação com câmeras de celulares. Em uma atuação, inicialmente, apenas instrumental, Olegário Lucena se distancia da comum prática dos repertórios pré-formulados e repletos de canções que atingem uma relação afetiva e mercadológica com o público. Em um caminho contrário, busca improvisar e experimentar com versatilidade e se torna evidente o quanto ele se diverte e compartilha esse sentimento enquanto toca. A energia que um artista pode trocar com seus espectadores marca nossa memória e essa é uma experiência que nosso entrevistado traz em sua prática e em sua narrativa. Quando nos conta sobre o seu início no circuito musical local, Olegário cita o quanto festivais e bandas que teve a oportunidade de frequentar e ver de perto impulsionaram suas escolhas estéticas: “Comecei com bandas da cidade, com meus vizinhos, com meus primos. Depois, eu vim estudar aqui em Caruaru. Mas, assim, o que me motivou muito, nas primeiras vontades, é que por mais que você conheça artistas pela televisão e Internet, aqueles que você vê pertinho são os que realmente fazem a vontade surgir. E foi lá em Santa Cruz [do Capibaribe – PE], vendo os meus vizinhos, vendo o festival Capibaribe in Rock que Beto Skin promove, vendo o pessoal aqui de Caruaru que já fazia parte da cena Rock and Roll, Jonathan Richard e outros como, estudei com ele, Petrus Felipe que é professor aqui ainda. E a gente vai pegando um pouquinho de cada um”. Refletindo sobre sua formação e influências do fazer musical, Olegário reconhece a importância da sua forma de transitar entre as ruas e os palcos convencionais em que acompanha outros artistas: “Nesse trabalho de rua que, atualmente, eu venho desenvolvendo, também, de uma maneira paralela porque eu acompanho outros artistas como Agda, lá de Santa Cruz, que está na estrada. [...]. Aí, tem trabalho em Garanhuns, às vezes, com Alexandre Revoredo, a gente toca por lá. Com Nino Alves que é percussionista, recentemente a gente participou do Canavial Instrumental que foi na cidade de Upatininga (PE). Foi numa igreja e foi meu primeiro show instrumental e fiquei maravilhado porque a plateia era muito atenta, silenciosa, muito massa. E, entre eles também, ando por aqui no São João”. O que se descreve, acima, é um percurso entre diferentes contextos e estruturações sociais da prática musical que nos ajuda a questionar a concepção preconceituosa, muito difundida pelo senso comum e até mesmo entre agentes do mercado cultural, de que o músico dos espaços populares não tem outra opção de trabalho ou que esteja frustrado em sua informalidade. Olegário Lucena nos esclarece como as ruas podem ser escolhidas a partir de uma necessidade de expressão e de ampliação de oportunidades de buscar a potência musical em si: “Nesse projeto de rua, a gente se depara, também, com o comércio amigo que dá uma força, como foi aqui com a casa Nova Music que dá uma energia, dá uma estratégia amais para você se desdobrar na rua. Porque a rua não tem energia, você tem que chegar preparado. Então, são vários fatores que culminam nesse final. Não é tão de sucesso, de glamour, mas eu me satisfaço muito bem assim”. O artista apresenta, portanto, um arcabouço de realizações que o ajuda a idealizar a transformação da calçada pública em uma área de fruição e visibilidade, exercendo uma troca com o lojista amigo que tem, também, seu estabelecimento divulgado. Rodeado por seu aparato técnico montado no chão, Olegário aciona relações interpessoais e os desdobramentos entre referências regionais da música popular e outros segmentos, como o Rock e uma aproximação com o Blues, que encontram a aceitação entre o público e os realizadores locais. Narrando sobre o seu “ir e vir” entre parcerias, Olegário mencionou a seu início profissional, também, com o forró: “A gente sempre começa com o forró, né? Na região, aqui, é uma coisa muito natural pender pro forró e, daqui a pouco, abrir para as outras coisas”. Esse referencial atravessa, rapidamente, sua apresentação no momento em que ele improvisa a partir da canção “Asa Branca”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, e que momentaneamente ganha uma pegada Rock que a coloca em diálogo com toda a dinâmica que se desenrola diante de nossa câmera. De repente, o artista começa a recitar versos para as pessoas que passam a sua frente e traz mais um elemento para ativar trocas de olhares, sorrisos e ganhar a simpatia expressa nas cédulas e moedas depositadas no case. Toda a movimentação se transforma, mais uma vez, no instante em que substitui a guitarra por uma escaleta e dá continuidade à fluidez de criação sempre recorrendo ao loop station. Para finalizar, liga um microfone e brinca com versos e rimas com nomes de mulheres, simula as vozes das suas personagens e leva a sua performance a um novo tom, com particular dose de humor e ação cênica/interpretativa. Voltando a tratar das transições entre palcos convencionais e os espaços públicos, Olegário entendeu o potencial de retorno financeiro da música nas ruas em uma situação em que precisou agir com criatividade para sanar um prejuízo. A necessidade de conseguir dinheiro o fez dar um novo significado aos espaços públicos que ele já enfrentava como um provocador de experimentos sonoros: “Bicho, a ficha caiu quando eu estava no Festival de Inverno [de Garanhuns – PE] e eu tinha fechado três noites, mas bati o carro. Tive que pagar uma nota, tive que me desdobrar. Eu já estava liso, o dinheiro da noite pagava os músicos. Aí, eu tive que tocar na rua. Eu estava liso e disse: ‘toco na rua mesmo’. Porque eu já tocava sem a necessidade de abrir o case pra ganhar dinheiro. A gente já tocava em palco, em barzinho, e eu tocava na rua por diversão. Mas, agora, rua é um trabalho também. Uma coisa que entra no orçamento autossustentável da coisa. Porque a gente sabe que o mundo musical é caro, instrumento é caro, tudo é caro, principalmente no Brasil. Aí, tem que tirar de todo canto que der. Além do sentimento artístico pra não falar só em dinheiro”. Com naturalidade, o tipo de performance por ele adotada, como a registramos e exibimos em vídeo, vai sendo engendrada no espaço-tempo em que o artista partilha suas imprevisíveis manifestações. Assim, Olegário nos explica que: “Ela está em construção. O que vem na cabeça, o repertório de coisa que eu já conheço, eu boto, tentando seguir uma linha que não seja grotesca de uma música para outra. Mas é natural; o que eu penso, eu faço, e boto na hora. Tem premeditação não e o que eu fiz ontem não é igual ao de hoje e amanhã, também, não vai ser igual. É sempre uma experiência nova”. De modo geral, estar na rua é, sobretudo, ter a coragem de enfrenta-la, superar uma série de receios e criar um novo sistema de referências para o ato de conviver e de disputar suas áreas de ocupação. Este é um desafio que Olegário Lucena descreve a partir de objetivos experimentais, verdadeira investigação sobre sua própria prática musical: “Eu sinto isso, a rua é um laboratório de pesquisa pra, [...], saber até a aceitação do seu som. Talvez seja um dos maiores palcos; talvez não, é. O maior palco que tem é a rua”. Com este olhar, o artista segue despertando processos de uma partilha criativa em que as interações são atiçadas e os estímulos sensíveis reavivados cotidianamente. Boas Leituras: BENITZ, André de Noronha D. “Indo além do Blues: guitarra e música eletrônica”. UFRS, 2018. DE LEMOS, Daniela B. “As jam sassions de Blues  em Porto Alegre: rituais de interação, sociabilidade e seus códigos”. UFRS, 2019. PAIXÃO, João Jorge dos A. “Ensino da improvisação nas aulas de guitarra na perspectiva dos alunos”. Brasília: UnB, 2016.


Vai no Teu Tempo

O grupo “Vai no Teu Tempo” começou a atuar nos espaços populares de Caruaru (PE) poucos meses antes da realização do nosso registro no dia 13 de novembro de 2019. O palco em que encontramos seus três integrantes foi a Feira de Caruaru que, com o passar dos anos, tornou-se um grande polo comercial cheio de corredores, lojas com as mais variadas mercadorias, lanchonetes, bares, restaurantes e muita representação da cultura popular local. Tivemos, então, a oportunidade de conhecer Rafael Ferreira de Lima Silva, Maria Camila Ferrera Silva e José Carlos Alves Gomes que se apresentam, respectivamente, com os nomes artísticos Urbano Leafa, Maria Ferrera e Carlos dos Ventos. Neste encontro, a primeira canção que o grupo nos apresentou foi “Assum Preto”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, introduzida pelo pífano de Carlos dos Ventos que foi acompanhado pela pandeirola meia lua de Maria e pelo pandeiro de Urbano Leafa. A música, durante a dinâmica, tornou-se uma trilha sonora para a poesia autoral que Urbano começou a recitar performaticamente, aproximando-se um pouco mais da pequena cestinha colocada no chão para recolher colaborações em dinheiro. https://youtu.be/0QZ4-fvOyHE Neste instante inicial, o grupo já revelou o hibridismo entre poesia, teatro de rua e música que caracteriza sua proposta nos espaços públicos. Em nosso campo de observação, adentrou a percepção de uma postura cênica que ainda está sendo descoberta pelos artistas, ainda está sendo maturada, e que se traduziu em uma leve timidez diante da nossa câmera. Carlos dos Ventos também recita versos de estrutura popular e a poesia é exposta por meio de sua corporalidade e da empostação de voz que trazem o teatro popular de rua como uma referência. Assimilações que se evidenciaram, também, quando o grupo passou para a execução de “Asa Branca” (Luiz Gonzaga), momento em que a interação espontânea e imprevisível com o público passante aconteceu naturalmente. Pudemos, então, registrar a presença de um transeunte, conduzindo uma bicicleta, que se aproximou do trio demonstrando muito interesse pela atuação. Nesse instante, Carlos se volta para o espectador com o pífano produzindo uma direta troca de olhares. O apreciador, tendo interrompido o seu trajeto para curtir a apresentação, bate palmas acompanhando o ritmo de um clássico da música brasileira. Seu nome é João Severino dos Santos e, conversando conosco, revela que a apresentação o fez lembrar do Mestre Vitalino que também ficou conhecido pela banda de pífanos que liderou na região por muitos anos. A presença do pífano em Caruaru e outras cidades do Agreste Central pernambucano é muito marcante e suas bandas tradicionais “estão espalhadas entre os centros urbanos e a área rural desses municípios, que se assemelham em clima e vegetação mais ao Sertão do que com a Zona da Mata e o Litoral” (COELHO [Org.], 2014, p.24). Na própria narrativa de Carlos dos Ventos podemos comprovar que os mestres desse instrumento continuam passando o seu saber aos jovens e estes dão novos sentidos e usos à sonoridade tão peculiar. Nosso entrevistado conta que, antes da formação do grupo que passou a se apresentar em lugares públicos, conheceu o pífano, ou pife, com Vitória do Pife, musicista e sua conterrânea. “A gente começou com aula e eu escutava histórias de que ela tocava no sinal. Fui conhecendo pessoas que trabalhavam na rua, também, que faziam malabares no sinal. Uma vez, eu estava em Arcoverde com um amigo que faz malabares e eu disse: ‘ei, véio, eu sei duas músicas aí, dá pra te acompanhar no sinal?’. Ele disse: ‘bora simbora’” (Carlos dos Ventos). Dessa forma, Carlos dos Ventos narra como a descoberta do pífano e da relação entre música, poesia e outras artes se deu diretamente nas ruas e áreas de uso coletivo da cidade, acrescentando as ações artísticas que presenciou no Polo Cultural Estação Ferroviária de Caruaru. Enquanto iniciante na prática musical, Carlos percebeu vantagem nas apresentações nos sinais (ou semáforos) de trânsito para arrecadar contribuições: nos referidos pontos, o artista pode repetir as músicas que conhece sem os espectadores percebam que o repertório ainda é reduzido. Afinal, os veículos passam com seus condutores e passageiros que não percebem que o artista pode estar exercitando algumas poucas músicas enquanto ainda ganha experiência e técnica. “Então, eu aprendia uma música e ia pro sinal testar e comecei desse jeito. Depois veio a necessidade de começar a tocar nos rolês com o grupo Vai no Teu Tempo pra arrecadar o dinheiro pra sustentar o rolê, pra gente comer, pra gente pagar passagem, pra gente fazer a manutenção dos instrumentos e foi desse jeito” (Carlos dos Ventos). Assim, Carlos expõe uma das motivações para a criação do grupo: busca de recursos para dar continuidade às apresentações nos espaços populares. Ao lado desse objetivo prático, encontra-se o desenvolvimento da noção coletiva e heterogênea das linguagens e das práticas culturais da região em diálogo com outras geografias urbanas de recepção e fomento das artes. Em um processo de vivência conceitual e empírica do repertório, o grupo procura, sempre que possível, exercer e defender uma postura cênica com objetos que acrescentam simbologias às narrativas que ganham vida, também, em saraus com uma dinâmica particular: “(...) a maioria dos saraus é aquela coisa repetitiva, uma pessoa apresenta um poema e recebe as palmas e vem outra pessoa. No Vai no Teu Tempo, a gente faz uma coisa diferente: a gente faz a poesia ininterrupta. Uma pessoa recita e, quando ela termina, já vem outra. Não tem tempo para palma e, aí, vem aquela coisa da emoção acumulada” (Carlos dos Ventos). A partir deste movimento entre os participantes da proposta poética, o trio de artista pretende interagir com objetos que permitam uma brincadeira com a ideia dos elementos da natureza: fogo, ar, terra e água. Por exemplo, um candeeiro, um regador, o próprio pífano que simboliza o vento com o sopro, etc. Ao descrever esses jogos lúdicos, Carlos dos Ventos explica o horizonte estético e relacional que o grupo busca empreender: “A coisa da poesia vem antes da arte de rua e de se apresentar em alguns lugares. Mas, a proposta da gente é fazer isso: montar um número que quebra essa quarta parede e busca a interação com as pessoas, que traga as pessoas pra dentro da fantasia. É isso o que a gente quer, ter um pé na fantasia e um pé na realidade. Pra falar com as pessoas da realidade, trazer para nossa fantasia e todo mundo brincar” (Carlos dos Ventos). A poesia como linguagem primeira e impulsionadora de contatos interpessoais também está no centro da narrativa de Maria Ferrera que iniciou o seu contato com a música a partir do Rap. Moradora do bairro Santa Rosa, em Caruaru, sempre acompanhou as batalhas de rimas nas ruas. Ao mesmo tempo, sempre se interessou por escrever poemas e tentar musicá-los. Com o tempo, as oportunidades de conhecer mais de perto a música popular tradicional da cidade foram aparecendo em espaços como a já citada Estação. Neste espaço de memória e atividades coletivas, Maria teve aula com o mestre Anderson do Pífe e, também, pegou em um pandeiro pela primeira vez. Compreendendo as possibilidades de aproximar a cultura popular com a levada do Hip-Hop, Maria vem, junto ao grupo Vai no Teu Tempo, abrindo cada vez mais espaço para a música dos mestres tradicionais em seu próprio trabalho. Como artista em construção, Maria acredita no avanço para apresentações em outras localidades: “E meu intuito é me apresentar em outras cidades e acho que aqui [Caruaru] é mais como uma vitrine para poder saber como vai ser esse processo de se apresentar nas ruas e eu sei que, em vários lugares, a recepção vai ser diferente também porque, aqui, o pessoal é mais caloroso, dança quando a gente toca, mas eu tenho consciência de que em algum lugar pode ser que a recepção não seja essa e a gente tem que estar preparado para qualquer coisa que aconteça na rua” (Maria Ferrera). Esta é a percepção da complexidade das ruas, praças, feiras, dos mercados e transportes coletivos como palcos que, ao mesmo tempo que são desafiadores, são carregados de uma liberdade interacional muito atraente aos artistas. Para Maria, as ruas são alvo de seu olhar aguçado, também, como fotógrafa em mais uma prática que a deixa muito à vontade nos Espaços Populares. Dessa forma, a importância do grupo Vai no Teu Tempo foi crescendo em termos de objetivos práticos a serem alcançados: “Acho que a tocada na rua veio muito da necessidade, também, de conseguir dinheiro para comprar instrumentos. Estou tentando aprender vários instrumentos diferentes e a rua foi a possibilidade de conseguir a grana e, também, para poder viajar e fazer poesia na rua porque eu acho que tem uma desvalorização da poesia em vários lugares, em Pernambuco, qualquer lugar que seja. E o jeito mais fácil de conseguir, mais fácil entre aspas, a grana é tocando na rua (...). Eu acho que a experiência da rua é como um laboratório. E, também, como eu sou fotógrafa, eu gosto muito de perceber como as pessoas funcionam ao longo do dia e isso vai servindo  de laboratório para mim também” (Maria Ferrera). A analogia da rua com um laboratório – lugar de investigação, de testagem e de busca por soluções – é muito propícia à relação entre arte e vida como descrita por nossa entrevistada. Perspectiva que inclui a busca pela sobrevivência. Por isso, quando perguntamos a Maria se é possível sobreviver da música nas ruas, sua resposta é, ao mesmo tempo, realista e positiva: “Eu acho que dá. Assim, se você souber ser uma pessoa minimalista, digamos assim, de ter só o que você precisa, eu acho que daria sim. Você não exagerar nos quereres, eu acho que rola”. Para Urbano Leafa, a expectativa de sobrevivência da arte nas ruas ainda está distante e os valores arrecadados se configuram como um complemento que ajuda nos gastos específicos para manutenção e ações do grupo. Sua aproximação com a música se deu, também, reconhecendo os enlaces com a poesia, somando a isso o convívio em ONGs de cultura e com amigos que partilham conhecimentos na área. Desde a formação do Vai no Teu Tempo, os espaços populares deixaram de ser uma circunstância acidental para se tornarem os territórios selecionados para sua poética. Uma experimentação que Urbano Leafa classifica da seguinte forma: “É muito desafiadora porque a gente vai tocar pra tentar trazer um pouco de alegria para a vida das pessoas, um pouco de acalanto, pela correria do dia a dia. E as pessoas, também, se sentem muito acolhidas para com isso. Chegam...muitas vezes não é nem a questão do dinheiro que se dá, a questão é o sorriso, um aplauso, uma dança, um olhar mais alegre. Isso é o que contempla a gente na música de rua” (Urbano Leafa). Aqui é acrescentado mais um significado elaborado pelos próprios artistas e que ainda não havia sido mencionado. Os músicos/poetas/atores de rua, no grupo Vai no Teu Tempo, interpretam as ruas como laboratórios, como teatros sem “a quarta parede” e como o espaço fundamental de esgarçamento do olhar sobre o cotidiano e micro liberações de amarras relativas aos compromissos e problemáticas sociais variadas. O alcance artístico sendo definido pelo público de comportamento imprevisível e impulsionador de situações únicas. Nas palavras do próprio Urbano Leafa “a interação é a melhor possível, a gente é muito bem recebido onde toca. As pessoas chegam, param para olhar. Essas pessoas, talvez, estejam estressadas no seu dia a dia, mas param para olhar, param para escutar. Às vezes deixam uma moeda, às vezes deixam uma cédula, ou deixa até um sorriso, uma alegria, uma coisa compartilhada em si”. Inseridos nesse contexto cultural entre mestres e parcerias jovens, podemos perceber que os três integrantes do grupo vivenciam a pluralidade de oportunidades da cidade e buscam reverberar ações independentes que ganham as paisagens mais movimentadas, sempre associando o hibridismo de linguagens com a espontaneidade das relações de aprendizado e de acesso aos referenciais locais e universais. Vai no Teu Tempo é a aceitação dos processos, das descobertas e da reinvenção diária das práticas cotidianas, em consonância com os ritmos dos territórios urbanos. Boas Leituras: CARREIRA, André Luiz Antunes Netto. “Teatro popular no Brasil: a rua como âmbito da cultura popular”. Revista Urdimento, nº 4, 2002, p. 05 a 11; COELHO, José Rafael (Org.). “Pífanos do Agreste”. Recife: Página 21, 2014.


Los Muchachos em Caruaru

Nosso projeto segue sua itinerância e adentraremos as vivências que marcaram nossa passagem pelo Agreste pernambucano em Novembro de 2019. A cidade de Caruaru é o próximo campo empírico sobre o qual vamos nos debruçar com trajetórias artísticas, práticas sociais e situações particulares que a caracterizam, atualmente, como um cenário para a música nos espaços populares. Chegamos ao município com expectativas alimentadas pelo reconhecimento nacional que as suas expressões artísticas têm há décadas, incluindo o ciclo junino que atrai uma grande quantidade de visitantes. Na referida macrorregião estadual, Caruaru exerce uma forte relação entre atividades comerciais e manifestações da Cultura Popular e tem, nos últimos anos, aprofundado sua complexidade urbana com a expansão imobiliária. Assim, podemos vislumbrar uma série normatizações das relações sociais que permeiam os espaços públicos e os desafios que os músicos das ruas enfrentam em suas performances e interações. Em meio a esta conjunção, iniciamos percorrendo as ruas centrais onde lojas e outros setores de serviço impulsionam a maior parte do intenso movimento. Na Praça José Martins, mais conhecida como Praça do Banco do Brasil, encontramos e conhecemos os irmãos Charles e Jhonny Guisbert, músicos e cantores peruanos, que há um bom tempo se apresentam como “Los Muchachos” nas ruas de várias cidades brasileiras. Naquele dia, 13/11/2019, a dupla tomou conta do centro da praça e aglutinou uma boa quantidade de espectadores que acompanhavam a performática apresentação com um repertório de salsas, rumbas e boleros. Executando canções populares dessas vertentes da música latino-americana, Charles e Jhonny fazem da comunicação com os transeuntes uma marca da apresentação que é preenchida com a dança e a abertura para que as pessoas participem e se divirtam. Esse é um posicionamento corporal e estético quase cênico, teatral, que nos ajuda a perceber um método de defesa da imagem artística profissional para combater os preconceitos, sobretudo, das instituições públicas de vigilância – como pudemos presenciar em Caruaru –, além de diferenciar Los Muchachos dos outros artistas e grupos que encontramos. https://youtu.be/a_4sqz5aGbA Os irmãos vieram do Peru para o Brasil há mais de quinze anos e já passaram pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará até a Região Norte (Pará e Amazonas). Entre os anos de 2005 e 2006, instalaram-se no Recife (PE) onde fundaram a banda “Los Muchachos” com alguns amigos. Circunstâncias pessoais de cada integrante puseram um fim na formação do grupo e os dois irmãos assumiram o mesmo nome artístico, posteriormente, como uma dupla que continua percorrendo diversas cidades pelo país. As memórias sobre a temporada na capital pernambucana revelam um poco do início da prática nas ruas, como nos conta Charles: “encaramos as praças, as feiras, super mercados, lugares que a gente possa expressar nossa arte, nossa música; que nosso trabalho no Brasil, em si, é música”. A música, aliás, tem importância em suas vidas desde a infância, quando aprenderam a observar o próprio pai tocando violão e cantando em casa para animar festas da família. Na juventude é que iniciaram o aprendizado musical propriamente dito e a possibilidade de profissionalização começou a ser traçada e definida pelo desejo de “alegrar as pessoas”. Com esta perspectiva, Charles procura justificar e descrever sua atividade como artista nas ruas: “Eu noto muita gente que não tem condições de assistir um palco gigante e tem artistas de rua que expressam e fazem, até, muito bonito. Então, o chamado povão, o trabalhador do dia-dia, se alegra com isso. Vê uma opção de alegria no dia-dia do trabalho, do estresse, (...). E chega um artista de rua, expressa seu talento, faz aquela roda, todo mundo assiste. Então, é importante o artista de rua no meio de uma praça, de um calçadão, numa feira, é uma alegria opcional para o povo”. Assim, as apresentações de Los Muchachos, naturalmente ligadas à dança e à venda dos CDs e DVDs gravados de forma independente, são compreendidas e definidas, por eles mesmos, como uma diversão acessível a todos, como um momento de lazer produzido para a diversidade do público por dois artistas que entendem o cotidiano dos transeuntes. Jhonny, que assume diretamente a comercialização dos produtos, destaca, também, uma dimensão afetiva e de rememoração coletiva a partir do repertório da dupla: “Cantamos músicas, por exemplo, de Bolero e fazemos uma ‘viagem’ porque é uma música que não se canta mais, são músicas velhas dos anos oitenta, setenta, e nós transmitimos essas melodias. Resgatamos essas músicas e entregamos ao público. O público aceita muito bem. Lógico, viaja na música até o passado. (...). Interessante porque não se canta mais no rádio e na televisão”. Percebemos, então, que não é por acaso que a maior parte do público que se acomoda na praça para curtir o show é formado por homens e mulheres idosos que sentam nos bancos ou fazem um círculo em torno dos artistas e sacam os celulares para registrar o momento. Charles, que se destaca como cantor e dançarino, mantém um diálogo constante com as pessoas e aceita que os mais animados e extrovertidos se aproximem para dançar. Toda a situação se constitui como uma atuação outsider que vislumbra uma semelhança com espetáculos de palcos tradicionais. Por isso, a dupla carrega equipamentos que expandem o alcance da performance e que a torna um atraente entretenimento de rua. O uso de caixa de som amplificadora, mesa de som, microfone e cabos ligados a fontes de energia da redondeza, facilita a identificação de uma postura artística e de valorização dos produtos cuja venda garante boa parte de suas rendas mensais. Tudo é facilmente montado e, depois, recolhido pela dupla, o que denota a experiência de artistas sempre em trânsito. No entanto, essa é uma organização estrutural móvel que pode ser alvo de agentes dos poderes públicos que controlam os usos das áreas urbanas. Em Caruaru, fomos testemunhas desse tipo de abordagem e registramos a aproximação de fiscais da Secretaria de Ordem Pública do município. Sem sermos incomodados, continuamos com nossa câmera ligada, mas mantivemos uma certa distância para que os agentes e os próprios artistas não se sentissem intimidados ou desconfortáveis por qualquer motivo. No referido contexto, a Prefeitura estava implementando um forte controle das atividades de vendedores ambulantes, conhecidos como camelôs, em diversos bairros. O fato de Charles e Jhonny exporem os CDs e DVDs em uma mesa que servia de banquinha para vendas fez com que os fiscais atentassem para uma suposta “irregularidade” da ação na praça; ou seja, os artistas estavam sendo colocados na mesma categoria de comerciantes não autorizados. Este entendimento é facilmente contestável já que o trabalho dos artistas é completamente diferente: não ocupam uma área permanentemente e oferecem uma apresentação musical. Contudo, os dois irmãos dialogaram tranquilamente com os fiscais e atenderam à ordem de encerrar a atividades e desmontar os equipamentos. Enquanto a conversa com os fiscais se desenrola em tom cordial, um jogo de contradições se desenvolve. Ao mesmo tempo em que Charles dialoga com os representantes do poder público, Jhonny consegue continuar a vender os CDs de forma discreta. No exato momento em que os funcionários municipais explicam os impedimentos para a apresentação, algumas pessoas que apreciavam o show se aproximam para parabenizar a dupla de cantores. Em uma única cena, o público espontâneo demonstra sua aceitação aos artistas enquanto os representantes da Prefeitura de Caruaru exercem uma censura fruto da incompreensão diante da lógica independente do músico e/ou cantor dos espaços populares. Durante toda a situação, fica claro que a intervenção institucional é motivada pela venda dos CDs e DVDs; ou seja, torna-se implícito que a dupla teria maior liberdade de atuação caso não investisse em seus produtos. Este posicionamento da gerência pública ignora completamente as práticas dos músicos para constituir uma rede de parcerias e cooperações que, consequentemente, os ajuda a conquistar o respeito das pessoas por meio da interação imediata. Observamos, também, a tentativa de amenizar a proibição com o argumento de que os dois irmão podem buscar autorização da Secretaria de Cultura da cidade para obterem a liberação de apresentação nas ruas e outras áreas coletivas. Este é mais um exemplo de medida que não atende em nada ao cotidiano e à lógica de trabalho dos artistas. Estes últimos estão sempre se deslocando entre cidades, estados e até países, e, por isso, encontram-se impossibilitados de se prenderem à burocracia e à avaliação das instâncias de poder vigentes. Considerando estas incompatibilidades e divergências, tentamos entrevistar os fiscais que se encontravam na praça e, infelizmente, estes não se disponibilizaram a participar do nosso registro ou dar maiores esclarecimentos que possam ser incluídos em nossa pesquisa. Em toda a circunstância, ficou claro que os dois irmãos não demonstraram nenhum espanto diante do argumento de proibição; pelo contrário, estão muito acostumados com a situação que não é rara em suas andanças pelo país. No entendimento de Charles, por exemplo, a Arte de Rua é uma atividade que “muitas autoridades não veem como arte”. Assim, a autodefesa ou autolegitimação como artista é uma necessidade cotidiana que, ainda nas palavras de Charles, ganha a forma de um discurso de distinção: “O artista trabalha na rua, nós trabalhamos na rua, mas não somos da rua, não moramos na rua. A gente tem despesa de dormida, de alimentação, transporte e, às vezes, certas autoridades, infelizmente, não entendem isso. (...). Eles confundem o artista de rua com camelô, como um empecilho no meio da praça ou outra coisa que está atrapalhando”. A busca por tal diferenciação em relação a outros indivíduos que permeiam os cenários urbanos assinala, em mais uma situação da nossa pesquisa, o quanto o artista, que leva a música aos Espaços Populares, precisa desviar dos estereótipos sociais que pré-julgam e consideram o seu trabalho em uma condição irregular ou não profissional. Em resumo, precisa, constantemente, sinalizar que sua ação não representa um problema social a ser reprimido. Em sua oportunidade de fala, Jhonny declara que “a prefeitura deveria nos apoiar. (...). O artista tem que viver de alguma coisa, né? Da colaboração das pessoas. A pessoa é voluntária e dá dois Reais, cinco Reais. Tem que vender alguma coisa e, assim, temos o trabalho: o CD e o DVD”. A partir da nossa pesquisa, podemos considerar que, além da sobrevivência, os/as instrumentistas, bandas, cantores/as nos Espaços Populares procuram, também, formar o público e orientá-lo na valorização das expressões musicais que transitam por várias circunstâncias de exibição e remuneração. Tornam-se, contudo, produtores de manifestações musicais negligenciados pela maior parte das administrações públicas em seus planos de cultura e gerências para o incentivo às artes, mesmo em cidades ou Estados federativos que promovem a imagem de desenvolvimentismo local utilizando, também, seus artistas e ciclos festivos. Acreditamos, dessa forma, que é urgente a mudança de visão diante dos artistas nos espaços públicos para que se possa compreender como estes sujeitos sociais promovem uma cadeia e uma economia cultural que atinge uma gama de serviços por eles utilizados e que, principalmente, promovem situações de educação popular que compõem nossas paisagens e interações citadinas. Boas leituras: BECKER, Howard S. “Profissionais integrados, Mavericks, artistas populares e naïfs”. In: Mundos da Arte. Lisboa: Horizonte, 2010, pp. 196 – 228. RIBEIRO, Fábio H. G. “Abordagem sociointerativa da performance musical – reflexões sobre redes sociointerativas da cultura popular em João Pessoa – PB”. Revista Vórtex, Curitiba, v. 7, n. 1, 2019, pp. 1 – 28.


Petterson – autonomia artesanal

O trabalho do artesão é a mola mestra da única vida que ele conhece; ele não foge do trabalho numa esfera separada de lazer; leva para suas horas de ócio os valores e qualidades desenvolvidos e empregados em suas horas de trabalho (MILLS, 2009, p. 62). No texto “O ideal do artesanato” (2009), o sociólogo Charles Wright Mills faz uma reflexão sobre a representação social do trabalho do Artesão: um tipo ideal, ou modelo, de criador e produtor que passou a ser considerado anacrônico a partir da lógica industrial de produtividade, sobretudo, nos grandes centros urbanos. No entanto, o que a mecânica do ofício artesanal tem a nos ensinar sobre as possibilidades de relacionar trabalho com liberdade e autonomia? Essa é uma questão que pode ser estendida ao universo dos músicos nas ruas e demais espaços populares. Como mencionamos no primeiro texto publicado em nosso site, os artistas nas ruas pensam e efetuam a totalidade da exposição pública de suas obras, reinventando cenários e ativando o tempo da experimentação estética em lugares que acumulam múltiplos usos e reverberações. Nesse sentido, os músicos nas ruas, por exemplo, têm muito o que acrescentar às nossas concepções de autonomia artística, observando-se, no caso, suas estratégias profissionais que entrecruzam as situações musicais com as possíveis formas de viver. https://youtu.be/HFMrKqUh5FM O diálogo que tivemos com Petterson Sousa Nóbrega, no dia 23 de Outubro de 2019, quando o encontramos no centro de Petrolina (PE), inspirou-nos a elaborar essas questões sobre arte e vida. Ajudou-nos, também, a entender melhor uma interessante relação entre diferentes práticas artísticas que invadem as ruas e que podem ser complementares, entre si, a partir de iniciativas que buscam por soluções para a sobrevivência e para a ampliação do olhar sobre realidades cotidianas. No caso específico de Petterson, levar música às ruas foi uma ação que se uniu à venda de produtos/objetos artesanais. Em plena Praça do Bambuzinho, o músico se apresenta tocando violão e cantando ao lado de um amigo que toca um reco-reco como acompanhamento percussivo. Junto à dupla que se formou naquele mesmo instante, as peças artesanais são expostas em um tapete, aberto no chão, onde são dispostas bolsas de couro, pulseiras, anéis, colares e brincos. Algumas peças estão organizadas em mostruários como se estivessem em uma vitrine, bem à vista do comprador. Sentados em um banco, abaixo da sombra produzida pelas copas das árvores, os músicos artesãos se acomodam e se preparam para passar muitas horas em que vão relacionar arte e trabalho com diálogos, amizades e cooperações, pois não são os únicos ali a lutarem para conseguirem renda com as vendas nas ruas. Assim que iniciamos o registro audiovisual, Petterson escolheu executar a música “Tubi Tupy” dos compositores Lenine e Carlos Rennó. A voz, o violão e a parceria percussiva precisam sobrepor, sem microfones e caixas amplificadoras, muitas interferências sonoras completamente urbanas. A mencionada Praça do Bambuzinho divide, em duas faixas, uma avenida comercial movimentada na cidade; ou seja, motores, buzinas e anúncios em carros de som “passam por cima” e impõem uma dinâmica específica para a performance artística e, nela, é preciso ter habilidade para participar desse jogo de forças. Diante da intensa cacofonia do entorno, o artista precisa interromper o canto, mas dando continuidade à melodia no violão, para, em seguida, retomar a letra da canção do ponto em que havia parado. Assim, em meio ao conturbado cenário, fazer-se ouvir e chamar atenção das pessoas são desafios que se impõem na mesma proporção em que a forma de ser e de viver do músico artesão é opositora ao fluxo veloz dos nossos modelos de cidade. Aos poucos, vamos percebendo que Petterson escolhe seu repertório tendo por base músicas de autoria de pernambucanos amplamente reconhecidos. Após tocar “Jack Soul Brasileiro”, também de Lenine, dá sequência com “Manguetown” de Chico Science, Lúcio Maia e Dengue. Seu parceiro musical, no reco-reco, vai desenvolvendo uma variação da forma percussiva sinalizando que a dupla improvisa ritmicamente para poder, principalmente, adaptar o violão e a voz à circunstância sem equipamentos e posta em prática com muita simplicidade. Para os transeuntes, conhecer o que os dois artistas querem propagar exige aproximação e conexão com essas referências oriundas de um contexto da música pernambucana que ganhou reconhecimento nacional a partir dos anos 1990. Esta opção por referendar uma produção local se torna coerente com a narrativa de Petterson sobre a sua iniciação musical. Ainda adolescente, em Petrolina, o seu interesse pela música começou quando ele passou a frequentar o “movimento Rock’n Roll” da cidade: “Eu vi umas bandas que tocavam aqui na cena, na época eu tinha uns 13/14 anos. Tinha o Goca, o Apocalipse Reggae, (...). Eu comecei com a galera fazendo o som e me interessei. Com isso, eu arrumei um violão, comprei uma guitarra (...). Aí, eu fui começando nesse meio alternativo, fazendo música e compondo. Eu comecei a compor algumas músicas com uns amigos meus também, comecei a inventar alguma coisa”. Podemos entender, dessa forma, que a vivência de uma cena local espontânea, com amigos, impulsionou o aprendizado musical e, ao mesmo tempo, a valorização de segmentos do Rock e do Pop em Pernambuco. Dados biográficos como estes chamam atenção por conta da constante busca por exercer atividades artísticas atendendo a uma necessidade pessoal, interna; notando-se as mudanças de suas práticas particulares com o passar dos anos. Após formar uma banda chamada “Andantes”, na qual tocou por oito anos, Petterson foi atrelando a música ao artesanato em manifestações nos espaços populares. Diante do senso comum que monetiza as horas de trabalho, o artista realiza, para si, o que Wright Mills (2009) define como associação entre trabalho e diversão ou trabalho e cultura na lógica artesã de criação. O artesanato pode ser visto, portanto, como um modelo de satisfação no ofício pois, nele, não há motivações que se sobreponham ao prazer do processo de criação, onde o artesão é livre para reinventar os seus modos de fazer. A satisfação que o resultado lhe proporciona inspira os meios de alcança-lo, e desse modo seu trabalho não é apenas significativo para ele, mas participa da satisfação que ele tem no produto e que o completa (MILLS, 2009, p. 60). A partir desses significados da ação individual em um meio coletivo, podemos observar que o músico das ruas percebe seu próprio trabalho ao mesmo tempo em que percebe as realidades econômicas e comportamentais ao redor. Seu ofício está atrelado ao mundo da vida por onde quer que ele passe. Esse ponto de vista ganha, também, uma certa funcionalidade no dia-dia de Petterson. No desenrolar da entrevista, ele nos conta que as peças artesanais ganharam importância ao lado da música por dois motivos: para que sua renda aumentasse com os ganhos das vendas e, em contrapartida, para que sua atividade musical, nas ruas, ajudasse o artesanato a ser melhor compreendido, sofrendo menos intimidação por parte dos cidadãos e dos agentes fiscalizadores das atividades nos espaços públicos. Ou seja, música e artesanato andam juntos para tentar driblar classificações discriminatórias como “vagabundagem” ou “loucura” por exemplo. Essa escolha estratégica para ir às ruas nos faz entender que os usos mais comuns dos espaços populares podem determinar, por exemplo, sensações de maior ou menor receptividade das pessoas, de um modo geral, e estas impressões são expostas por Petterson na medida em que narra suas viagens para exercer seu entrelaçamento entre vida – arte – subsistência: “Como aqui não tinha muito essa abertura para esse negócio de músico de rua, pelo menos eu não via isso, (...),  eu saía com o violão e o artesanato (...), na verdade, a música ficava como uma segunda alternativa; se eu não vendesse o artesanato, eu parava na rua, botava o chapeuzinho no chão e começava a tocar. Isso de início. Quando eu fui rodando pelo Brasil, eu percebi que aqui, pelo menos na parte do Nordeste e começando o Sudeste, o pessoal não dava muito valor. Você, às vezes, passava o dia tocando na rua e não conseguia arrumar uma grana. Só que isso começou a mudar quando eu cheguei no Sudeste e fui mais para as fronteiras do Brasil. Eu percebi que a galera que faz música na ‘Sul America’, essa parte da Cordilheira dos Andes, tem mais essa cultura do que aqui no Brasil”. A partir dessa informação, nosso entrevistado nos revela suas comparações entre as receptividades em cidades brasileiras e cidades na América do Sul pelas quais ele viajou e aprofundou sua artesania artística na esfera coletiva com variadas interações. “Nesse momento que eu cheguei no Sudeste, eu comecei a perceber que eu tocava mas não tinha tanta aceitação do pessoal na rua. Eu conheci várias pessoas que estavam vindo do Peru e do Equador na mesma rota”. Este contato com músicos em outras regiões levou Petterson a mirar trilhas em países que fazem fronteiras com o Brasil e onde ele não teria muitas dificuldades para entrar e circular: “E eu decidi ir pegando a fronteira da Bolívia, chegando até o Acre, depois entrei no Peru. Quando eu entrei pro Peru, eu decidi ficar. Na primeira cidade que eu fui, encontrei um menino, um pandeirista, e ele ‘ei, vamos fazer um som?’. Ali já me instigou a continuar fazendo, né?”. Em suas andanças, Petterson chegou até Cuzco onde passou um tempo tocando nas ruas, bares e onde mais fosse convidado, em apresentações solo ou com parcerias. Lá obteve um interessante retorno financeiro e pôde viver um tempo com sua companheira e o filho recém-nascido. Indo além dos ganhos monetários, Petterson aponta o reconhecimento do público espontâneo como a principal diferença entre tocar nas ruas de cidades brasileiras e tocar em cidades no Peru, na Bolívia, no Equador ou no Chile: “o pessoal lhe vê na rua e vê um artista. Aqui no Brasil, eu sou sincero em lhe dizer,[o pessoal] vê você na rua e já diz que é um ‘doido’. Eu não estou dizendo que é geral, mas uma boa parte. [Diz que] é um desocupado, um vagabundo, entendeu?”. Essa é uma interpretação, atribuída à população e aos órgãos públicos de fiscalização e repressão, que faz o artista sentir falta de vivenciar diálogos que valorizem seu trabalho. Muitas vezes, a aproximação das pessoas se dá com a motivação de oferecer ajuda para que o artista saia das ruas e busque outra forma de sustento e sobrevivência. Enfrentando tais pré-julgamentos, Petterson apresenta forte posicionamento de valorização das práticas artísticas nos espaços públicos: “Aqui, no Brasil, tem que abrir mais esse espaço, a gente reconhecer que a rua é nosso lugar de expressão mesmo, de mostrar o que a gente é, e não ficar só dependendo desse sistema que só escraviza. Quer botar você numa fôrma e dizer ‘você só é aceito músico se tiver uma obra gravada em tal estúdio; se você tiver tantos seguidores nas redes sociais’, né? O músico de rua se liberta disso, ele diz ‘o meu prazer é fazer música’ e, claro, obviamente viver disso; porque ficar só tocando sem ter retorno é complicado, a gente tem que comer”. Da mesma forma, sua fala é contundente ao mencionar a repressão institucional pública nas ruas brasileiras que, à luz do dia, acontece por meio dos ficais “vestidos de azul” que costumam questionar sobre “alvará de licença, permissão”. Afirma, também, que as abordagens não são um fenômeno recente, ocorrem há anos, e que não acredita que o contexto atual, principalmente o político, vá ajudar a dar maior liberdade expressiva nas ruas. Tal perspectiva nos leva a refletir sobre a condição diária de buscar “viver da música”, expressão usual quando nos referimos à profissionalização e gestão financeira da arte. Sobre isso, Petterson argumenta que a condição do músico de rua, no Brasil, desenvolve-se de forma muito lenta; é preciso encontrar os “picos” certos onde “a grana flui mais fácil”. Na condição de estrangeiro, entre os vizinhos latino americanos, percebeu que tinha bom reconhecimento e atraía oportunidades por ser brasileiro e acredita que, da mesma forma, artistas de outros países são melhor valorizados por nós em qualquer dimensão de apresentação. Contudo, sobre as dinâmicas das ruas de grandes cidades brasileiras, considera que ter boa estrutura e bons equipamentos sempre favorece o artista; seja dando uma roupagem profissional aos olhos dos transeuntes, seja facilitando as liberações com prefeituras e outras instâncias reguladoras. Em sua autoconstrução artística, Petterson está há mais de dois anos fixado, novamente, em Petrolina e decidiu entrar para o curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Essa guinada em sua formação se deu, como nos revelou, pela presença da pintura em sua vida particular e pela já mencionada importância do artesanato em sua sociabilidade e sua renda a partir dos espaços populares. Por isso, seu caminho acadêmico tem sido, também, uma militância para o reconhecimento do artesanato entre seus pares dentro do campo artístico: “Eu estou há dois anos nesse ramo das artes visuais fazendo muito desenho, muito graffiti e fazendo pesquisa envolvendo o artesanato. Colocando o artesanato na academia como patamar de Arte; porque existe uma diferença. O pessoal acha que artesão de rua não é artista. Então, eu estou fazendo umas pesquisas em cima disso e a música é aquela coisa que nunca sai, né? (...). O mundo da música sempre está entrelaçado; mas, há dois anos, praticamente, eu estou me envolvendo mais com as artes visuais e com essa ambição de dar força ao artesanato. (...). Ser reconhecido no Campo da Arte: a Arte Visual, a Arte Conceitual que entra dentro da galeria”. A problematização dos lugares de exibição da arte e suas lógicas de inserção e de exclusão permeia, muitas vezes, nossa percepção sobre a cotidiana composição dos espaços públicos como territórios para a partilha estética. Podemos, por exemplo, questionar: como a rua pode continuar a ser um meio para a arte diante das instituições especializadas em usufrutos, discursos e financiamentos para o Campo Artístico? Petterson, em sua iniciativa, mostra-nos um dos caminhos possíveis no Vale do São Francisco: lembrar ao campo acadêmico da arte o quanto as ruas podem movimentar processos híbridos de criação; ou seja, que transitam dentro e, ao mesmo tempo, fora das galerias e dos museus. Esta é uma estratégia de autorreconhecimento que se estende ao universo da música no Brasil que, em seus diversos contextos, teve e tem sua musicalidade oriunda das ruas, como já foi levantado historicamente por José Ramos Tinhorão em “Os sons que vêm da Rua” (2013). Contudo, entre legitimações, mercados e a profissionalização, Petterson destaca em si, e nos demais músicos das ruas, o potencial de fazer a arte pertencer àqueles que querem, simplesmente, produzi-la; àqueles que não precisam que instâncias superiores permitam que se faça arte ou não. Tal postura fica evidente quando perguntamos a ele o que é ser um músico nas ruas, ao que Petterson responde: “Músico de rua, pra mim, é um ser autônomo. É o autônomo que a instituição quer formar. A Universidade diz que forma autônomos, mas, para mim, o autônomo é aquele cara que vive da sua própria correria, vive do seu dia-dia, faz porque gosta. (...). Eu faço assim: ‘quem gostar, gostou’. (...). Não tem aquela cobrança de como você deve se portar, deve se vestir. (...). Eu vejo que o pessoal se preocupa muito com o estereótipo; e o músico da rua, não”. Por isso, podemos concluir que, em sua “correria”, trajetória ou cotidiano, Petterson Nóbrega segue modelando os detalhes do seu universo criativo na sua mente e nas suas relações; ao lado de amigos e cenários urbanos que são matéria prima para a artesania conceitual e prática da sua autonomia artística. Boas Leituras GARSON, Marcelo; SOUZA, Lucas. “Música popular e sociedade”. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF, v. 13, n. 2, Dezembro de 2018. MILLS, C. Wright. “O ideal do artesanato”. In: Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. TINHORÃO, José R. “Os sons que vêm da rua”. São Paulo: Editora 34, 3ª edição, 2013.


Forró Parar pra Tomar Uma

O encontro da sanfona com a zabumba e o triângulo se popularizou massivamente no universo do Forró. A união dos três instrumentos e de seus tocadores é uma imagem que se destaca, também, no ideário de autenticidade que, muitas vezes, impulsiona as discussões sobre a história e os desdobramentos sonoros do ritmo nordestino. Ao longo do anos, tornaram-se muito conhecidos, portanto, os chamados trios “pé-de-serra” que se multiplicam pelas cidades pernambucanas, principalmente, durante o ciclo junino. Independente do debate entre tradicionalismos e atualidades no mercado musical, podemos perceber que o formato do trio pé-de-serra mantem o Forró presente nas ruas, praças, feiras livres, transportes coletivos e muitos outros lugares públicos que estamos, no caminhar da nossa pesquisa, chamando de Espaços Populares. A facilidade de deslocamento dos músicos com seus instrumentos também faz os trios percorrerem diferentes cidades e festejos e se adaptarem à circunstância de arrecadar colaborações nas ruas “passando o chapéu” ou de atenderem aos convites para se apresentarem em eventos privados mediante pagamento de cachê. Essa é a versatilidade de práticas e interações com a qual nos deparamos quando conhecemos o trio Forró Parar pra Tomar Uma – formado pelo cantor e tocador de triângulo Bento, o sanfoneiro Cido do Acordeon e o zabumbeiro Vandeilson Neves – na cidade de Petrolina no dia 22 de Outubro de 2019. https://youtu.be/Se47GuYPmJM O nosso registro ocorreu no bairro Areia Branca, subúrbio petrolinense, no início da noite, quando a temperatura local se torna mais amena e a rua mais convidativa. Encontramos o Forró Parar pra Tomar Uma no bar Caldinho Ele e Ela que já contava com a presença de alguns clientes. O estabelecimento se localiza no canteiro central de uma movimentada rua, sua estrutura física é aberta e as mesas, distribuídas a frente do balcão de atendimento, estão rodeando uma árvore de ampla copa que cobre quase todo o espaço ocupado. De um lado e do outro da pista, muitos carros passam e os ruídos de motores e buzinas são intensos. Tais características nos fazem confundir o bar com a rua já que não há uma definição precisa dos seus limites, o que torna natural a aproximação dos músicos para tocarem forró e pedirem um retorno financeiro espontâneo à clientela. O cantor e tocador de triângulo Bento é quem nos conta um pouco da trajetória do grupo. Ao procurar ingressar no mundo dos forrozeiros, Bento comprou uma zabumba e começou a ter aulas para aprender a tocar. Em seguida, o exercício cotidiano o levou a cantar e, como ele mesmo menciona, a se “especializar no forró pé-de-serra”. Assim, a música foi ganhando, aos poucos, importância na sua vida. Essa casualidade está presente em muitas situações narradas por Bento, como em sua lembrança sobre o surgimento do nome do grupo. Junto a músicos amigos, Bento acompanhou a viagem de um time de futebol que estava indo de Petrolina até o Recife de ônibus. A pedido do empresário da equipe, Bento e seus amigos tinham a função de tocar forró, até o destino final, sem deixar ninguém dormir. Abastecidos com uma caixa de cachaça Caribé, 12 litros ao todo, os passageiros acabaram com todo o estoque da bebida ainda muito distantes do fim da excursão. Então, logo pediram ao motorista que fizesse uma parada na estrada. Como nos conta Bento, o motorista perguntou – “Parar para quê?” e todos responderam – “Parar pra tomar uma”. Assim, o grupo assumiu seus momentos de boemia e amizade e passou a se chamar Forró Parar pra Tomar Uma. Inicialmente, o objetivo com a música na rua era justamente o de conseguir um dinheiro extra para “tomar uma” e, dessa forma, o trio foi estabelecendo uma tática para chegar nos bares e poder tocar o forró a partir de um acordo feito ocasionalmente com os donos dos estabelecimentos: A gente não tem um roteiro certo. A gente sai de casa com o intuito de tocar. Aí, não tem local específico. Eu saio de casa, a gente coloca um dinheiro no bolso, abastece o carro e sai nós três. Chega num barzinho, pega uma cerveja, estuda o ambiente e pede ao dono do bar para tocar um pouco. Geralmente, a gente fala que é violão. Aí, chega com a sanfona, toca a sanfona e passa o chapéu nas mesas. Nisso vem uma renda extra, uma renda muito boa que garante o sustento. Não vou dizer que não garante. Garante o sustento, é muito bom. Com isso, associou o que eu gosto de fazer com o dinheiro que é necessário. E fui buscando mais e mais. Fui buscando mais local pra tocar e estou aí até hoje. Interessante como Bento apresenta uma estratégia cuidadosa para contar com a parceria dos bares. A menção inicial de que eles trazem um violão parece se adequar ao que os consumidores estão mais acostumados a ouvir nos estabelecimentos. A prévia observação do lugar faz o grupo perceber se ali irão conseguir uma boa quantia recolhida no chapéu de couro após a apresentação. Como nos foi narrado pelo tocador, a animação dos clientes é imediata ao perceberem que se trata, na verdade, de um trio de forró. Especificamente no momento do nosso registro, os músicos se posicionaram ao lado de uma mesa com quatro clientes. Bento apresentou o trio com sanfona, zabumba e triângulo, anunciou que iriam tocar e perguntou se poderia contar com a colaboração de todos em qualquer valor. A receptividade foi imediata. Em meio às conversas, as pessoas, também, estavam envolvidas com o repertório do trio cheio de grandes sucessos como Espumas ao Vento de Accioly Neto, Tareco e Mariola de Petrúcio Amorim ou Caboclo Sonhador de Maciel Melo. Todas são canções românticas – que falam de desilusões amorosas ou sobre um tipo de orgulho em relação à região de origem – e que são há anos amplamente tocadas nas rádios e gravadas por diversos intérpretes. Com tal percepção sobre o gosto do público, o Forró Parar pra Tomar Uma escolhe as músicas com o objetivo de envolver a memória afetiva das pessoas e interagir com elas de forma descontraída, sempre abertos a brincadeiras e camaradagens. Na mesa mais próxima aos músicos, os consumidores cantavam as músicas e batiam palmas ritmadas para acompanhar, por exemplo, a batida da zabumba ou do triângulo. Estes dois instrumentos fazem a base para que a sanfona possa desenvolver maior variação melódica, por exemplo. Dentre os quatro ocupantes nas cadeiras, conversamos com o agricultor Cleiton Diniz sobre suas impressões acerca do trabalho do trio nos Espaços Populares. Em sua opinião, a iniciativa dos três tocadores “alavanca mais o nosso interior, é uma cultura bonita”. Com a mesma finalidade, ele comenta sobre a música nas ruas: “nossos turistas não conhecem muita coisa disso, do nosso interior, e eles se familiarizam melhor com isso, entendeu?”. Ou seja, a recepção que o grupo tem nos bares e nas ruas está, muitas vezes, justificada por uma noção de musicalidade “do interior” que é comumente identificada como “nossa” ou pertencente a uma linhagem “autêntica” referente ao Nordeste rural. Por mais que o repertório do trio seja de músicas relativamente recentes – em comparação a clássicos de Luiz Gonzaga e João Silva, por exemplo – e amplamente executadas nas mais diferentes estruturas de espetáculos e shows, a trindade da zabumba com a sanfona e o triângulo reveste a sonoridade com uma ideia de passado ou de “cultura de raiz”. O saudosismo implícito na situação está ao lado, também, da simpatia nutrida pelos músicos. Eles sempre estão sorridentes, cumprimentam conhecidos, aceitam as ofertas de doses de cachaça e acenam de volta para motoristas de carros particulares que passam em frente ao local. Assim, podemos reconhecer uma das estratégias interacionais com a qual o músico popular dissolve o distanciamento entre artistas e público nas ruas, bares, praças, feiras livres, transportes coletivos, etc. No caso do Forró Parar pra Tomar Uma, o resultado dessa ligação, ou sintonia, com as pessoas se traduz, também, na quantia de dinheiro arrecadada após a apresentação. O próprio cantor Bento admite que o trio não encontra dificuldades para ser bem recebido por onde passam: “Sem sombra de dúvida. É muito bom, muito gratificante. A gente fala que é violão, mas quando vêm que é a sanfona fica muito mais aconchegante. O pessoal participa da festa, do canto. A gente faz o pessoal participar do nosso forró e isso integra mais, a gente fica mais à vontade, mais solto pra tocar e sem preocupação. Volta pra casa satisfeito com o que fez na rua. Além do retorno financeiro que eu falo, a gratidão de tocar e sair bem...eu vou dizer bem simplificado, gratificante com o dinheiro e com o que eu fiz naquele ambiente. Deixando o espaço aberto para voltar”. Ou seja, caso os músicos não conheçam o dono do bar e os clientes nas mesas, torna-se necessário o procedimento de aproximação que o grupo faz com calma, diálogo e ganhando, primeiro, a confiança dos que estão presentes. Bento aborda, também, como a naturalidade dos diálogos coloca o músico e o seu admirador no patamar de amigos. Algumas relações fraternas podem ganhar força e trazer benefícios para o próprio grupo: “Quando a gente toca, como eu te falei, a tocada deixa muita amizade. Muita amizade, e esses instrumentos, que nós temos aí, foi tudo doação. A sanfona de R$12.000,00 foi doação de um empresário. A zabumba foi doação. Triangulo, som, essa coisa toda. Pra gente tocar, não tinha som, não tinha instrumento bom. E, através da gente tocando nos barzinhos, a gente foi conhecendo as pessoas, conhecendo os empresários e eles fizeram essa doação em troca de nada! Só em termos de ver a gente tocando, ficar gratificado por esse forró que a gente faz na rua, nos barzinhos, e assim...eles nos convidam...mesmo eles doando os instrumentos, eles nos convidam pra tocar, mas pagam o cachê normalmente. Não desconta nada, não tem nada a ver com a doação que ele fez”. Este é um tipo de suporte ou ajuda que, sem dúvida, incentiva a profissionalização do trio pé de serra na rua ou nos espaços fechados de Petrolina e cidades próximas. Proporciona estrutura técnica em algumas apresentações e expande a visibilidade e o reconhecimento da atuação do Forró Parar pra Tomar Uma como possibilidade de subsistência por meio da música. Com tantas histórias e lembranças, Bento se recorda de apenas uma situação em que se viu impedido de trabalhar na rua com os equipamentos de que dispõe: Uma vez, no carnaval. Coincidiu com o carnaval...porque aqui puxa muito pra o Axé por ser colado com a Bahia, Juazeiro e Petrolina, e começou a gente a introduzir o frevo e o forró. E teve uma ocasião em que eu levei um som mais potente e começamos a tocar frevo e forró ao mesmo tempo e o pessoal veio pra o nosso lado, o pessoal que gosta da cultura pernambucana. E foi impedido, pediram para tirar o som. Mas foi só dessa vez, o único problema foi esse no carnaval. Exposto como uma exceção, o episódio reforça a relação que a população local tem com parâmetros de uma musicalidade tradicional seja de uma perspectiva interiorana ou de pertencimento à “cultura pernambucana”. De forma geral, o trio Forró Parar pra Tomar Uma defende, em sua prática artística, a liberdade de existência nas ruas. Bento confessa, por exemplo, o entendimento de que as ruas, de um modo geral, estabeleceram os princípios que, posteriormente, foram adaptados aos palcos fechados: Essa parte é interessante porque sem isso [arte na rua], eu acho que...todo teatro começou na rua, eu acho. Eu acredito que sim. Eu não tenho um estudo formado, mas acredito que foi na rua que começou essa coisa para depois levar pro teatro, assim, pro ambiente fechado. Eu sei que, na rua, eu me sinto muito bem. Talvez, se fosse um espaço fechado, eu não teria tanta força de vontade de cantar, de me expressar, como na rua. Na rua, eu me sinto muito bem, muito à vontade. Em resumo, como representante da música nos Espaços Populares, o trio Forró Parar Pra Tomar Uma segue inventando os “palcos” urbanos e criando as vivências do lugar e do tempo partilhadas espontaneamente e ao sabor das surpresas que as noites nos bares podem reservar. Sendo um exemplo, sobretudo, de uma interessante estratégia que relaciona a construção de confiança e de amizades com o senso de humor nas interações boêmias.


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