PRAÇA TEXTUAL


André Natureza

O cantor e compositor Manoel André Neto propõe, nas ruas e praças de Petrolina (PE), uma encruzilhada simbólica sobre o Sertão para dar forma ao projeto musical e poético que leva à frente o seu nome artístico: André Natureza. Nascido na cidade de Fortaleza (capital – CE), André foi criado em Quixeramobim, no sertão cearense, onde a música foi se fazendo presente em sua vida por meio das amizades e dos hábitos boêmios nos “barzinhos”. Referindo-se a esta prática muito comum a cantores e músicos iniciantes em todo o Nordeste, contou-nos que os bares foram os espaços em que começou a encarar o público e a aprender com os parceiros de composição e de apresentação que atuavam no mesmo circuito. Aliás, na entrevista que realizamos no dia 22 de outubro de 2019, os amigos foram referendados como “escolas musicais” para voz e violão que o artista teve na cidade onde cresceu, lugar que marca suas memórias de infância relacionando os hábitos da cidade e das áreas rurais mais próximas, consolidando suas imagens mais afetivas sobre o sertão e o que significa ser sertanejo. Há seis anos, o artista vive em Petrolina e trabalha como servidor público. Contou-nos que, logo que chegou para morar nesse outro sertão, às margens do São Francisco, ele estava “musicalmente adormecido”. Um breve diálogo com uma amiga o despertou e o levou a um processo de busca pelo modo de atuação musical que melhor se encaixaria em sua relação particular com a cidade pernambucana. Iniciou-se, então, uma procura sonora que se transformou na defesa de um olhar narrativo sobre a representação mais consolidada e propagada do Sertão a partir dos conceitos regionalistas que emergiram no século XX. Idealizações estéticas entre o espaço natural (geografia e meio ambiente) e a representação humana em práticas de sobrevivência, de crenças e perpetuações dos costumes (ALBUQUERQUE JR., 2011). https://youtu.be/4UQkDe3ZbM8 A Praça 21 de Setembro, em bairro central de Petrolina onde encontramos André Natureza, é a espacialidade cercada por asfalto, carros, concreto, edifícios, restaurantes e outros serviços comerciais que espelha, no tempo presente, uma urbanidade aparentemente estranha aos significados poéticos reverenciados pelo artista em canções e poemas recitados. O espaço popular é escolhido para que as pessoas acessem sua proposta musical gratuitamente e com a proximidade que incentiva as conversas e outras interações. Nesse sentido, André Natureza deixa muito claro que não tem o interesse de obter retorno financeiro com seu projeto nas ruas e, por isso, não disponibiliza uma caixa ou chapéu para recolher colaborações. Abertamente, fala sobre a vontade de cantar a temática escolhida e de afirmar uma necessidade humana: “A gente sabe, todo mundo é necessitado de cultura. O Sertão mesmo, ele tem muito o que reaflorar, que renascer dentro das pessoas, e o nosso papel é esse: é o de levar de forma gratuita cultura às ruas, alimentar a alma nordestina do pessoal”. O uso de palavras como reaflorar e renascer denota o sentido de resistência, como se um conceito de Sertão estivesse deixando de ser vivido ou de ser lembrado. A dinâmica do tempo histórico da representatividade sertaneja levaria, portanto, à necessidade de afirmar que uma memória coletiva está em vias de ser desaprendida, como se estivesse sempre atrelada à condição de quase desaparecimento. Diante disso, o músico passa a abordar uma prática que tem como objetivo a retomada de um sentimento do qual, no seu ponto de vista, todos parecem fazer parte, aquilo que nosso entrevistado chamou de alma nordestina. Em nosso registro audiovisual é possível perceber como André Natureza seleciona seu repertório de modo a articular a prática da voz e violão dos barzinhos com sua proposição de cultura regional para as ruas e praças da cidade. Abaixo de uma árvore, o músico se apresenta com um violão elétrico, pedestal com microfone, pedestal com letras e cifras das canções, duas caixas de som (uma para retorno e outra para o público), tudo acompanhado de pequenos objetos que ajudam a inventar uma cenografia. Ao lado do cantor, encontra-se instalado um pequeno tamborete de couro que carrega uma placa com o nome “André Natureza” e uma ilustração que remete a uma paisagem sertaneja genérica. Nesse tamborete, encontra-se apoiado o livro “Retratos do Sertão” do poeta Marcos Passos (São José do Egito – PE) que o nosso artista considera a sua “bíblia do sertão”. Ao falar sobre a antologia poética, André nos diz que “onde você abre, vê o Sertão retratado de várias formas, por vários artistas. Muita coisa linda. Fala do [sertão] do Pajeú, fala da cidade, fala do sertão, do gado, fala do vaqueiro, fala do relampejar, da chuva, da seca. Então, você tem vários elementos ali”. Exaltando este referencial poético específico, a escolha do repertório a ser apresentado nas ruas interliga a amplitude social dessa memória cultural (entre a vivência pessoal na infância e as representações literárias que se fazem mais presentes) com as canções que o artista foi conhecendo com seus companheiros musicais ao longo dos anos. Junto às músicas mais conhecidas de outros autores, são apresentadas composições próprias que se mantêm na mesma linha temática e que tratam diretamente do saudosismo mais íntimo em relação ao município de origem e ao modo de se integrar ao ambiente natural sertanejo (ecossistêmico). Com a montagem da situação artística na praça em Petrolina, a postura do cantor desloca a prática adquirida nos bares e restaurantes para uma circunstância de contemplação. Considerando que no barzinho os clientes estão mais propensos a consumir e conversar entre os seus, André aponta que apresentar-se nas ruas lhe dá muito mais prazer e o coloca na busca de sua satisfação pessoal. Conta-nos que nas ruas e praças “você tem interação de pessoas, muita espontaneidade das pessoas com o artista. O pessoal para, conversa, interage de alguma forma e, às vezes, isso não acontece na noite, nos barzinhos”. O artista cria para si e para sua sonoridade uma ambiência com nova significação incluindo outros elementos naturais do entorno, como, por exemplo, o gramado da praça, o canto de pássaros típicos de locais arborizados em grandes centros urbanos, a interferência do vento e da luminosidade em nossas sensações que se deixam conduzir pela narrativa regional que o cantor expressa. Assumindo, também, uma dimensão de personagem, o músico usa um chapéu de couro como marca para um figurino que está de acordo com o universo imagético com o qual trabalha. Dessa forma, passou a observar, em diálogos com transeuntes, que consegue acessar o imaginário e a memória compartilhada, principalmente, pelos moradores e passantes mais velhos, da mesma forma que aguça a curiosidade dos mais jovens. Em outubro de 2019, quando realizamos o campo de pesquisa em Petrolina, André Natureza estava iniciando suas atividades nos espaços populares e já mencionava um tipo de negociação que precisava exercer, principalmente, com estabelecimentos comerciais para conseguir pontos de energia fundamentais para ligar os equipamentos e instrumentos nos “palcos” públicos visitados: “Nesse trabalho de rua, a gente depende, para sonorização, de energia. Essa é a maior dificuldade, a energia. Porque você não tem disponível nas praças, acredito que por uma questão de segurança, e sempre tem que estar pedindo nos comércios. Não são todos os comerciantes que aceitam, muita gente diz que a conta de luz já vem cara”. Diante das negativas, o artista tenta argumentar e explicar sua intenção de levar “cultura, para as pessoas, sem fins lucrativos”. Algumas vezes, consegue sensibilizar comerciantes locais e faz as ligações elétricas com extensos fios que conectam microfone, caixas de som e violão. Mediante esse desafio prático de ocupação do território público, André Natureza ressalta, sobretudo, o caráter espontâneo com que toda a ação se desenvolve. Espontaneidade que vem da vontade que o artista pode ter, ou não, de ir às ruas cantar e tocar e que se soma às possibilidades de abertura dos comerciantes e dos moradores/transeuntes. Em suas palavras, a ação nas ruas ganha a semelhança de um momento de inspiração: “Esse trabalho cultural aflora de forma muito espontânea, então não tem como você dizer – ‘Prefeitura, vou precisar de energia dia tal para fazer uma apresentação’. Não é assim. Na verdade, ele surge. O dia amanhece, você olha e diz – ‘tenho que levar música para a rua’. É como compor, a coisa chega”. Com essa concepção da arte advinda da inspiração, André Natureza se coloca no espaço urbano fazendo dele um cenário e expondo com clareza seu conceito artístico. Partilha e dá continuidade a uma visão saudosista do passado que, ao mesmo tempo, defende a vigência dos referidos valores regionais na atualidade. Assim, movimenta um cruzamento simbólico de afetos e imagens que unem geografias do semiárido nordestino e imaginários sertanejos. Sobrepõe, portanto, Quixeramobim, Petrolina, a musicalidade e a poesia literária regional. O artista, em sua prática nas ruas, proporciona, sobretudo, uma possibilidade de questionamento dos hábitos de consumo artístico numa cidade como Petrolina, e migra, em sua trajetória, dos barzinhos para o contato direto e aberto com o público dos espaços populares. Sua insistência em ressaltar a importância de um projeto que não objetiva retorno financeiro, faz do artista um observador da urgência em promover a fruição artística em seu estado mais puro e de fortalecer uma seara de identificação coletiva com determinado segmento musical e poético. O resultado da experiência impulsiona questionamentos sobre como a música nos espaços populares pode contribuir para a formação de públicos locais e para sensibilização diante do fazer musical independente. Podemos dizer que, na praça que se torna “palco”, a paisagem ganha a “cenografia” que consegue trazer o contexto utilitarista ao redor (trabalhar, morar, ir e voltar) para dialogar com o conceito artístico vivido. Em sua história de vida e em seu discurso particulares, André Natureza transfere para a sua própria prática de músico/cantor/compositor o status que as obras de arte têm para a maior parte das pessoas: a qualidade de ser fruto (afloramento) de uma inspiração criadora. Boas leituras: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. “A invenção do Nordeste e outras artes”. 5ª edição, São Paulo: Cortez, 2011. SILVA, Kalina Vanderlei. “Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII”. Recife: CEPE, 2010.


Viola e poesia no Rodeadouro

Nas artes e vivências dos espaços populares, todos nós somos improvisadores. Podemos pensar dessa forma porque as nossas interações, apesar de serem baseadas nas expectativas de nossos hábitos, são inventadas, reformuladas e redescobertas diariamente. Este é um princípio que direciona, também, a nossa ação de pesquisa, exigindo um planejamento que otimize os deslocamentos da equipe com itinerário pré-estabelecido mas que, ao mesmo tempo, seja flexível e adaptável às surpresas impostas pelas circunstâncias. Indo direto ao ponto, alguns momentos de nosso trabalho podem ser descritos como uma verdadeira “caça ao artista” nos espaços coletivos. Esse foi o processo em que se deu a nossa busca pelos violeiros repentistas sobre os quais tivemos notícias durante os nossos registros de músicos/compositores/cantores que se apresentam nas ruas, praças e outros pontos da geografia urbana de Petrolina (PE)  e Juazeiro (BA) em troca de contribuições espontâneas. Influenciados pelo imaginário em torno da cantoria popular do Nordeste, percorremos feiras livres de alguns bairros da cidade pernambucana e não encontramos os cantadores. Nossa intuição havia falhado e outro cenário de trabalho, que estava sendo ocupado por tais artistas, deveria ser descoberto. Com esse objetivo, no dia 20 de outubro de 2019, a Ilha do Rodeadouro, no rio São Francisco, entrou na nossa rota de pesquisa. Ficamos sabendo, finalmente, que os violeiros aproveitavam a intensa movimentação de banhistas que visitavam a ilha turística. Quando realizamos esse encontro, a poesia popular adentrou nosso acervo documental e trouxe outra dimensão complexa do improviso: a criação rápida e rítmica de versos. Após o contexto dos jovens MCs que praticam o freestyle na Batalha da Pista da orla urbana de Juazeiro (conteúdo publicado em 17/01/2020), perseguimos e alcançamos a poética rimada e metrificada por experientes cantadores. Tivemos a oportunidade de conhecer, então, os poetas populares Severino Silva, Zezinho Oliveira e Gabriel Cantador, respectivamente nascidos em São José de Egito (PE), Mauriti (CE) e na Cidade de Sousa (PB). Há décadas, os três se apresentam pelas praias, feiras e eventos no Sertão do São Francisco e narram histórias de suas inúmeras viagens em cantorias por todo o país. https://youtu.be/Pq5eXem6xVg Sempre em trânsito e buscando seu “ganha pão”, o violeiro repentista é um personagem social que, por meio de olhares históricos, tem o seu surgimento atrelado, muitas vezes, ao desenvolvimento populacional do Nordeste brasileiro principalmente nos séculos XVIII e XIX. A abertura de estradas e a fundação de vilarejos e povoados pelos sertões favoreceram rotas comerciais que ligavam o interior aos centros urbanos litorâneos. Entre o comércio, a agricultura e a pecuária, atravessamentos culturais formaram as bases sobre as quais se estabeleceram práticas poéticas e rítmicas que remetem à memória coletiva e à oralidade de origens ibérica, africana e nativa. Com toda a carga tradicional dessa manifestação da poesia, a típica prática do poeta cantador permeia as histórias de vida dos nossos violeiros entrevistados. O primeiro deles, Severino Silva (72 anos), vindo do Sertão do Pajeú (PE), contou-nos que começou “a bater viola primeiro com Canarinho, Zé Canário, chamado Canarinho, de Serra Talhada. Mas, de quando em quando, me encontrando com Pinto. De quando em quando, Pinto do Monteiro vinha e me dava mais uma dica, né?”. Na mistura entre vida e viola, Severino destaca o fato de que, em meio ao acesso que teve aos cantadores da sua região, iniciou seu trabalho com 14 anos de idade e, com 17 anos, começou a viajar para atender à sua arte/ofício. Severino carrega, como podemos perceber, referências culturais importantes para fortalecer seu nome como violeiro repentista. O Vale do Pajeú, onde se localizam São José do Egito, Itapetim e outros municípios que movimentam a poesia popular pernambucana, tornou-se uma região reconhecida nacionalmente como “berço” de renomados repentistas. Próximo da Serra do Teixeira e do Cariri Paraibano, onde nasceu Pinto do Monteiro, o Sertão do Pajeú teve seu nome propagado por famosos poetas e cantadores improvisadores, entre eles Rogaciano Leite, Louro do Pajeú, Dimas e Otacílio Batista e muitos outros (vale ressaltar que a lista de poetas que fazem a fama do Vale do Pajeú é enorme). Dedilhando a viola enquanto conversa com a gente, Severino vai dando exemplos dos seus mestres e das cidades que conheceu, em todo o país, ao se apresentar nas mais diferentes situações. Dentre seus “palcos”, os espaços públicos não poderiam faltar porque é neles que os versos improvisados ganham a dinâmica das rápidas interações com os passantes. Para Severino, estar nas ruas é uma prática que se traduz na sua possibilidade de ser artista e de mostrar seu conhecimento: “Depois que eu amadureci em cantoria e no som da viola, aí eu cheguei ao ponto de cantar para o povo nas ruas. Canto nas praças, nas orlas, canto nas praias. Canto em vários lugares nesse mundão e, graças a Deus, tenho me dado muito bem com o povo que admira a cultura popular e, assim, eu vivo juntamente com eles”. Na sua fala, podemos frisar uma noção de preparação e desenvolvimento artístico estimulada pelo público das ruas, conhecedor da cultura popular, que se torna exigente diante do artista para, depois, poder retribuir com valores dados espontaneamente. Da mesma forma, a citada maturidade do cantador o leva, também, a enfrentar os desafios de cantoria com outros violeiros, onde a “disputa” se dá no domínio de métricas como Sextilha, Septilha, Décima, Martelo Agalopado, Galope à Beira-Mar, etc. A partir dessa compreensão do trabalho, Severino Silva admite que é conhecido e bem recebido pelas pessoas na região e que pôde divulgar melhor seu trabalho depois de gravar CDs e DVDs. Somam-se, portanto, a experiência no repente com algumas práticas de aproximação com o público e formas de vender o próprio trabalho. Tudo isso funciona, principalmente, com a escolha correta do local aberto onde o artista se apresenta. Um ponto turístico, como especificado pelo cantador, pode ser um ambiente muito bom para ter o retorno financeiro tão necessário, por mais que continue a ser incerto. Afirmando sua subsistência como cantador, Severino nos conta que “quando a gente vai fazer uns baião de viola desses, vamos dizer, por aqui no Rodeadouro, nas orlas, a gente tem aquelas gratificações daquela turma que admira a cultura da gente. A gente ganha duzentos, trezentos, cem, quinhentos Reais, dependendo da quantidade de pessoas admiradoras do nosso trabalho, entendeu? Mas, graças a Deus, eu vivo bem na profissão de viola”. Quando pensamos na especificidade da Ilha do Rodeadouro, precisamos considerar as interações dos artistas com os banhistas que buscam lazer e contato com a natureza de forma individual ou com famílias e amigos. Falamos da prática de turismo aliada ao consumo da culinária regional em restaurantes com estrutura de palhoça e mesas espalhadas pela areia. Ou seja, os frequentadores não estão vivendo a pressa do cotidiano e a objetividade de suas ações. Em meio ao distanciamento dos compromissos rotineiros, a arte popular chega para fazer do diálogo e do contato interpessoal a sua matéria poética; muitas vezes, com o desenvolvimento de temas que fazem parte da vida e da memória das pessoas. Este é, também, um lugar de inspiração para Zezinho Oliveira, nosso segundo entrevistado. Em sua fala, o autorreconhecimento como cantador faz parte de sua história de vida: “Meu nome é José Furtado de Oliveira, mas sou conhecido como Zezinho Oliveira em todo território brasileiro, viu? Nasci e me criei no município de Mauriti no Estado do Ceará, no ano de 1945, no dia 07 de Junho. (...). Com quinze anos de idade, comecei a cantar; ouvindo os poetas cantando e eu prestando atenção. Ninguém me ensinou, só Jesus que me ensinou esse dom. (...). Aí, eu continuei na minha carreira. Depois do Ceará, eu vim pra aqui no ano de 2000. Cheguei aqui já com a viola, comecei a cantar. Eu canto na orla de Juazeiro, Petrolina, nos clubes, pé de parede. Em toda cidade, aqui, eu canto e o pessoal me conhece. Em todo canto que eu chego, o povo me abraça e me paga bem. Em todo canto, nas mesas, que eu chego, o povo bate palma pra mim porque eu sou um repentista da viola e eu canto a cultura brasileira, né?”. Assim como Severino, Zezinho Oliveira começou muito jovem na viola. Contudo, seu entendimento sobre a própria formação é um pouco diferente do seu colega. Para Zezinho Oliveira, a sua prática poética lhe foi dada como um dom (divino ou natural) e seu aprendizado veio da observação diante dos antigos cantadores mais experientes, dando evidente destaque para a escuta atenta em seu processo autodidata. A autocompreensão como repentista está associada à demonstração de autoconfiança com a qual, em sua concepção, o poeta já nasce. Esta autoconfiança se reflete, por exemplo, na forma como descreve seu contato com o público dos espaços populares: “A experiência é que eu chego nas mesas elogiando o pessoal. Eu chego de mesa em mesa elogiando e o povo me dá dinheiro, me dá de cinco, me dá de dez, me dá de dois, me dá de um Real, me dá de vinte Reais e me dá de cinquenta Reais. Tem mesa que eu já ganhei de cem [Reais] e é assim. Tem noite que a gente ganha mais, tem noite que a gente ganha menos, mas a cultura é assim: ela enverga, mas não quebra”. A descrição, em tom positivo, sobre a profissionalização e o retorno financeiro se junta à explicação sobre a escolha do lugar onde se apresentar: “Onde a gente chega e que acha o apoio, a gente tá cantando. Onde a gente chega e não acha, a gente também não canta. A gente chega numa mesa e se o povo não gostar, a gente, também, sai pra outra. Agora, quando a gente chega na mesa em que abraçam a gente, a gente fica com aquela alegria, canta pra todo mundo. Todo mundo fica sorrindo pra gente, pagam muito bem à gente”. Toda a narrativa vai revelando os espaços populares como ambientes, ao mesmo tempo, de reconhecimento e de formação do violeiro repentista. Para Gabriel Cantador, a viola foi a possibilidade de deixar o trabalho como agricultor e procurar viver exclusivamente como poeta. Nascido na Cidade de Souza, na Paraíba, Gabriel Cantador vive há mais de quarenta anos em Juazeiro (BA). Conta-nos que, nesta região do São Francisco, conseguiu inserção em programas de rádio e televisão para projetar seu nome e seu trabalho. Quando perguntado sobre o início de sua trajetória, nosso terceiro entrevistado, de forma muito semelhante a Zezinho Oliveira, atribui sua poesia a um tipo de talento com o qual nasceu e descobriu ainda criança: “Meu envolvimento na cantoria é porque toda vida...eu nasci poeta, né? Já cantava, assim mesmo, sem viola, já ganhava dinheiro sem viola. Quando eu ia chegar na feira, o pessoal dizia ‘olha o poeta de Chico Gabriel’, meu pai se chamava Chico Gabriel, ‘olha o poeta, manda ele cantar’. O pessoal achava graça, ria. Agora, nem viola eu tinha nesse tempo. Pegava qualquer pedaço de pau e tocava igualmente uma viola. Meu destino era tocar viola. Depois, eu peguei [sic] trabalhar com 16 anos de idade e meu irmão me deu uma viola (...). Depois que peguei essa viola, nunca mais me viu na roça. Peguei a viola que ele me deu e comecei a cantar com ela naquelas fazendolas, onde a gente convivia com aquele pessoal. (...). Faziam cantoria e me chamavam, as rádios me chamavam também porque já estavam me apresentando àquele público. Estava agradando aos poetas também. (...). E, hoje, estou aqui; já gravei vários CDs, gravei, também, DVD. E me apresentei em vários festivais de viola e sempre estou vendendo meus CDs onde eu posso. Cantando muito aqui no Rodeadouro e na orla que é onde tem gente de fora que abraça e gosta de poesia”. De forma geral, para os três violeiros, a essência da arte nas ruas foi sendo agregada às gravações de CDs e/ou DVDs como produtos que podem ser vendidos – proporcionando um tipo de renda que vai além das contribuições espontâneas – ou apresentados como “cartão de visita” em espaços do mercado musical, como as rádios e programas de televisão. Podemos considerar que, há décadas, os poetas violeiros vivenciam distintos circuitos da arte e da cultura, entrando e saindo das sistemáticas institucionais públicas ou privadas. As ruas, praças, mercados, feiras, transportes coletivos e pontos turísticos continuam a ser os cenários fundamentais para esses artistas itinerantes; contudo, essa circulação reestabelecida todos os dias não deve ser romantizada, ou floreada, pelas idealizações tradicionalistas acerca desses poetas. Como enfatiza Gabriel Cantador, as ruas carregam a incerteza financeira e a constante busca pelo respeito à produção artística: “Cantar na rua é um problema. A gente canta na rua porque ama a profissão. Mesmo que não tivesse [sic] na rua, a gente cantava em casa mesmo quando chega a vontade de cantar. Porque o poeta nasceu dotado pela natureza. Agora, quem não é poeta aprende com os outros e diz que é poeta, às vezes. (...). Eu fiz o poema ‘O desabafo dos poetas’, né? Ele [antigo parceiro de trabalho] vinha comigo e cantava nas mesas, aí cantava mais eu [sic] e cantava sozinho meus versos. Ainda hoje, eu digo ‘O desabafo dos poetas’ é meu. (...). E continuo assim com a viola, cantando por aqui. Um dia ganha duzentos, outro dia cento e cinquenta, outro dia ganha sessenta, mas é o cada qual com seu cada qual, isso é o meu destino e a minha arte, minha profissão e eu abraço com amor. Graças a Deus, até hoje, tou [sic] batalhando”. Entre narrativas de vida que se assemelham e se diferenciam em detalhes e percursos, nossos três entrevistados evidenciam em seus trabalhos uma prática poética e ritmada que tem sua origem e essência nos espaços populares. O imaginário criado e difundido sobre os violeiros repentistas está ligado às feiras de pequenas ou grandes cidades, às antigas estações de trem, às praças de grandes metrópoles brasileiras, etc. Ligados, também, ao turismo no rio São Francisco, Severino Silva, Zezinho Oliveira e Gabriel Cantador dominam a experiência da poesia popular nos espaços públicos. Divulgam a poesia metrificada e improvisada que é, em si, a matéria de que é feita a interação social em torno da arte dos cantadores. Estes últimos procuram nas próprias trajetórias de vida e nos comportamentos dos ouvintes os temas para os versos que revelam as estratégias que cativam os colaboradores: senso de humor, elogios irônicos, simpática competitividade com os colegas cantadores e o incentivo engraçado – quase indutor – para que as pessoas paguem pela apresentação. Assim, a viola e a poesia, com toda a bagagem da tradição, ganham o dinamismo que se improvisa e se inventa, há muitos anos, no cotidiano da Ilha do Rodeadouro e de outras paisagens entre Juazeiro e Petrolina. Boas Leituras COSTA, Marcos Roberto Nunes; PASSOS, Saulo Estêvão da Silva. “Itapetim: Ventre Imortal da Poesia – antologia de poetas, repentistas e compositores itapetinenses”. 2ª ed. ampliada, Recife, CEPE, 2013. NUNES, Joselito. “Pinto velho do Monteiro – um cantador sem parelha”. 3ª ed. Recife, 2009. NUNES, Zelito. “No Sertão onde eu vivia”. 2ª ed. Recife: Ed. do autor, 2014. SAUTCHUK, João Miguel. “A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino”. Brasília, Tese, Pós-Graduação em Antropologia, UNB, 2009. TAVARES, Bráulio. “Contando histórias em versos: Poesia e Romanceiro Popular no Brasil”. São Paulo: Ed. 34, 2005. TEJO, Orlando. “Zé Limeira – Poeta do absurdo”. 10ª ed., João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000.


Damião Santos – Arrocha no Velho Chico

Nossa equipe de pesquisa e produção retorna à margem do Rio São Francisco. A dimensão do cenário nos faz sentir novamente a influência do vento e das águas na forma de percorrer duas cidades unidas por tantos fluxos e movimentos. Estávamos, assim, aguardando nosso próximo entrevistado. Nascido em Cabrobó (PE), Damião dos Santos Cariri se mudou, ainda jovem, para Juazeiro (BA) e, atualmente, mora em Santa Maria da Boa Vista (PE), cidade muito próxima a Petrolina, onde também morou por alguns anos. O artista, que conhecemos no dia 20 de outubro de 2019, tornou-se cantor de Arrocha e Sertanejo, nos espaços populares, quando sua história de vida o levou para estes municípios banhados pelo Velho Chico. https://youtu.be/kWPF9m8-2GU Sua infância foi na zona rural onde cresceu com seus pais agricultores. Na época, já cantava, ainda muito pequeno, para os familiares e recebia promessas de ganhar um violão. O acesso ao instrumento só foi possível anos depois por meio de uma doação, caracterizando sua prática musical e suas estratégias de apresentação nas ruas a partir das ajudas e colaborações que recebe de conhecidos, muito além das contribuições espontâneas em dinheiro. As menções ao suporte que recebe de amigos são recorrentes em sua narrativa e marcam sua forma de estabelecer uma rede cooperativa que, muitas vezes, não é constituída por outros profissionais da música, mas por pessoas que passam a considerar significativa a sua trajetória de vida. Vivenciando essas interações, acompanhamos Damião em uma apresentação na barca Santa Maria que é uma entre tantas que fazem o transporte coletivo de passageiros entre Petrolina e Juazeiro pelo rio. Em nossa conversa, Damião diz que não tem formação profissional, mas que decidiu cantar e tocar – “Muitas pessoas foram me ajudando, contribuindo e, hoje, eu agradeço a Deus por todas as pessoas que me ajudaram aqui em Juazeiro, em Petrolina. Agradeço a todo mundo. Eu não estou rico, mas estou vivo e estou feliz com todos que me ajudaram”. Nesse sentido, a música, que era uma brincadeira de criança, o levou a se desviar do trabalho de agricultor que o pai exercia. Sua resistência na atividade musical se dá com a sensibilização de pessoas que entendem seus objetivos nos espaços populares. Além das colaborações espontâneas em pequenos valores (como dois, cinco ou dez Reais), Damião nos conta que vai encontrando oportunidades em algumas rádios locais e em festas particulares também. Estas são outras práticas que, segundo o artista, aparecem a partir da sua insistência em estar nas ruas e nas barcas, estas são suas principais vitrines para exibição. Um estilo musical específico se faz presente nas apresentações: o Arrocha e seus contatos com o Sertanejo e a atual “Sofrência”. A preferência por essa linha da música romântica de massa se reflete, também, em seu figurino: uma camisa de botão e mangas compridas, calça jeans, botas e, como acessório, uma corrente dourada com um medalhão. Especificamente para este nosso encontro, Damião levou seu equipamento: uma caixa de som onde é acoplado um microfone com fio. A caixa está sincronizada ao Bluetooth do smartphone com o qual o artista escolhe a versão eletrônica (com bases de teclado) das músicas que selecionou para cantar. Esta forma de acesso e divulgação da música está no cerne do surgimento do Arrocha na periferia da Região Metropolitana de Salvador no início dos anos 2000. O uso de tecnologias de baixo custo e a internet facilitaram a organização de pequenos estúdios de gravação em bairros periféricos nas capitais e, também, nas pequenas cidades. Neste universo de produção, novos segmentos musicais se massificaram rapidamente em todo país. Maneiras de dançar, de consumir e temáticas particulares são reproduzidas e se tornam marcas de gêneros musicais que impulsionam, em seus seguidores, uma série de valores e discursos, principalmente, sobre as relações amorosas. Herdeiro do bolero e das serestas, a base rítmica do arrocha é suportada, inicialmente, por um teclado-arranjador (que contém ferramentas específicas para criação de arranjos) e uma guitarra. As letras têm como assunto principal o sofrimento, sempre de amor, tema constante nas canções do gênero. (...). Adotar a sentimentalidade como temática de suas músicas falando dos devaneios vividos por uma grande parcela do público consumidor foi um fator importante para a projeção do arrocha. A intensa paixão abordada nas letras faz do gênero um representante genuíno da latinidade brasileira e provoca identificação com boa parte do público (VLADI, 2015, p. 10). Apesar de sua intensa distribuição, o arrocha foi ignorado pela grande indústria musical por muito tempo. O que não impediu que seus sujeitos/criadores estruturassem uma complexa cadeia de interlocuções entre culturas regionais e culturas globais a partir de diretrizes da música POP mundial. Nesse sentido, Damião Santos exerce o Arrocha nas ruas de Petrolina, Juazeiro e Santa Maria em um sentido que vai além de sua preferência pessoal pelo estilo. Sobretudo, ele matem o cruzamento entre seus referenciais locais (identificação com o mundo rural, vaquejadas e criações de gado) e elementos estéticos musicais e mercadológicos que repercutem nos grandes centros urbanos também. As ruas e o passeio na barca são os espaços/situações em que sensações individuais são absorvidas por uma coletividade e Damião sabe que não pode dar vez para a timidez ou retraimento: “Eu nunca tive vergonha de me apresentar nas ruas. Eu chego assim, coloco a caixa [de som] ou o violão, começo a tocar e ali me apresento. Eu não tenho vergonha. A única vergonha que eu não gosto de fazer é praticar coisa errada. Mas, pro lado da música...chegou, cantou. Eu não tenho vergonha de nada. Me apresentar, ser humilde com as pessoas, respeitar as pessoas. Graças a Deus, todo mundo me conhece e meu jeito é esse”. Ser um cantor nas ruas requer coragem, ser destemido; mas, sobretudo, é preciso um acordo social de boa convivência com as pessoas. Essa preocupação reitera o caráter imprevisível do comportamento do público e a necessidade do artista, nos espaços populares, sensibilizar para a aceitação da sua atividade. Dentro da barca Santa Maria, Damião acomoda a caixa de som no chão da embarcação e se posiciona de frente para os passageiros. O som do motor da barca é altíssimo e o microfone se faz muito necessário, torna-se compreensível, portanto, a escolha do equipamento para aquele lugar. Inicia sua apresentação cumprimentando o público, dizendo seu nome e solicitando a contribuição voluntária daqueles que gostarem de seu trabalho. A primeira música que canta é a “Não deixo não” muito conhecida na voz do cantor Mano Walter: “Ela me fez comprar um carro, logo eu que amava meu cavalo/ Ela me fez vender meu gado pra morar no condomínio fechado/ Me deu um tênis, falou que a botina não combina mais com a gente/ Mas que menina indecente/ Aí não aguentei e falei o que o coração sente/ Vá pro inferno com seu amor!/ Deixar de ser pião, ouvir modão, meu violão, não deixo não/ Largar o meu chapéu pra usar gel, meu Deus do céu, não deixo não/ Não tem amor que vale isso não”. Mantendo a postura que inventa um “palco” improvável, a comunicação do artista com o público é constante. Enquanto não retoma as letras das canções, Damião transmite alguns recados, agradece ao dono da barca, divulga o nome o do nosso projeto “O Palco é a Rua” já que nós, com equipamentos para registro audiovisual, não teríamos como passar despercebidos na situação. O repertório vai sendo integrado à paisagem que ganha movimento junto à embarcação, alguns passageiros, mesmo distraídos, dançam ou demonstram envolvimento com o ritmo. A sequência da apresentação se dá com músicas que falam sobre festas, diversão e mais “sofrência” romântica com as canções “Seu polícia”, de Zé Neto e Fabiano, e “Porque homem não chora” de Pablo. Tendo consciência de que o Arrocha e o Sertanejo têm grande público na região, Damião justifica sua ação nos espaços públicos, também, a partir de sua própria história de vida: “Eu resolvi tocar na barca e em espaço público porque, quando eu saí de casa, eu perdi minha avó – eu morava com meus avós – e, depois que eu perdi  aminha avó, eu fiquei sozinho, abandonado, não tinha um emprego. Aí, vim para Juazeiro e resolvi viver. Morei na rua, passei fome. Depois as coisas foram apertando. Mas, Deus é tão bom, tão maravilhoso, que as coisas, aos poucos, foram melhorando e apareceram algumas pessoas, foram me chamando pra levar pra um condomínio, tocar alguma coisa. Agradeço a Cardoso do Condomínio Santo Antônio. Agradeço ao pessoal da barquinha. Todo mundo aqui de Juazeiro, o Gaúcho. Essas pessoas que me acolheram. (...). O pessoal do bar do Gordo. O pessoal todo acolhedor, eles estendem a mão”. As amizades foram os instrumentos sociais para acrescentar oportunidades e novos palcos. Ao lado dessa estratégia, Damião adiciona, atualmente, o intenso uso de redes sociais para divulgar vídeos e áudios, sendo este um outro circuito de comunicação e contato de grande importância em seu cotidiano. Justamente nestas ações corriqueiras, ele vive o prazer e as dificuldades de ser artista nos espaços populares, buscando sempre consolidar os laços de amizade e colaboração, indo e voltando em suas atividades, mas sempre entendendo seu modo de comunicar e chamar atenção dos transeuntes: “A música na rua é bom. O caba (sic) está cantando, algumas pessoas estão sentadas, outros estão prestando atenção. Um pede uma música, outro dá um ajuda. É muito bom. Eu gosto muito de fazer esse trabalho. Eu sou apaixonado por fazer esse estilo de trabalho”. Assim, Damião Santos se mantém indo e voltando entre as cidades próximas ao São Francisco, desempenhando seu canto e reverberando as paixões do Arrocha.


Batalha da Pista

Os espaços populares como territórios de interações e musicalidades não estão reduzidos às perspectivas do instrumentista, compositor/cantor que engendra um “palco” em um “cenário” urbano ou que se adapta à realidade e aos acontecimentos situacionais das ruas para mostrar seu trabalho em troca de contribuições espontâneas. A arte, em suas diversas possibilidades, não cumpre o papel de apenas invadir os lugares públicos, ela também emerge deles e se torna cultura no sentido de ser uma ferramenta mobilizada pelos atores sociais na elaboração de discursos, práticas e na luta pelo direito à fala, à expressividade e outras corporalidades. Especificamente no sentido de pertencimento a uma manifestação coletiva, a presença da poesia improvisada, rimada e ritmada sempre foi um objeto de estudo previsto em nosso planejamento de pesquisa nas quatro Macrorregiões de Pernambuco, considerando, principalmente, a potência e a importância dos violeiros repentistas, dos cordelistas e dos emboladores nos terrenos da cultura popular como feiras, mercados e áreas turísticas. Obviamente, as manifestações das ruas que se colocam na interseção entre música e poesia não ficariam restritas às tradições da cultura popular nordestina e o Sertão do São Francisco, em cidades como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), não está engessado no estereótipo “inventado” e difundido sobre a região. Nesse sentido, nossa equipe de pesquisa não se surpreendeu ao encontrar ações coletivas para disseminar o Rap e a cultura Hip-Hop a partir de jovens organizados e ativadores de determinadas localidades públicas. https://youtu.be/0Vi8DWzLH-8 Por meio de músicos produtores locais e parceiros do nosso projeto de pesquisa, tivemos acesso aos organizadores da Batalha daPista que acontece na pista de skate de Juazeiro (BA) às margens do rio São Francisco. Na noite do dia 19 de outubro de 2019, às 20h, encontramos os integrantes, entre público e MCs, iniciando as atividades. Uma batalha de MCs é formada por uma roda de participantes que instigam dois poetas – os MCs – a disputarem argumentos por meio de rimas improvisadas – freestyle – que acompanham uma batida – ou beat – específica. Ainda sobre o funcionamento desse tipo de Roda ou Batalha, torna-se importante esclarecer que toda disputa conta com um mediador que controla o tempo de rima e promove a votação para que o público ao redor decida o vencedor de cada “round” e, por fim, o vencedor da batalha. Organizada por Matheus Mansur – o MC 2M –, a Batalha da Pista contava com a presença de, pelo menos, vinte a trinta pessoas. A batida era emitida por uma caixa de som portátil sincronizada via bluetooth com os celulares dos membros do movimento. A batalha acontecia em meio a outras ações de ocupação do espaço, como praticantes de skate e de manobras com bicicletas. A partir de nossos diálogos e registros de entrevistas, percebemos que a maioria deles moram em bairros periféricos e compõem uma juventude negra que estabelece ações artísticas de forma completamente independente. Para tanto, os organizadores pedem colaborações aos frequentadores para que a atividade tenha continuidade, possa ser divulgada e os vencedores possam ser premiados. De forma geral, o que se procura manter é a constituição de um espaço para a plena expressão de temas do cotidiano por meio do freestyle que, ao lado da batida, é criado associado à performance. Alguns MCs disputam com um beat mais lento, outros preferem o mais acelerado e isso influencia a potência corporal, a expressão facial e as reações do público que está constantemente interagindo com os discursos feitos no calor do “confronto” de ideias. No caso da Batalha da Pista de Juazeiro, presenciamos, em muitos momentos, o que a cultura do rap chama de “batalha de sangue”. Nessa modalidade, um MC procura desmoralizar o seu opositor e colocar-se em posição superior sem limites ou censuras. Poderíamos entender como um “vale tudo” no improviso. Em suas rimas, os MCs da Batalha da Pista abordaram política, racismo, sexualidade, repressão policial, consumo de drogas e outros temas. Na maioria das vezes, tais assuntos permeiam a necessidade de se colocar como superior ao oponente e, em vários sentidos, preconceitos e discriminações afloram como forma de combate. Diante das rimas mais polêmicas, digamos assim, os frequentadores se manifestam discordando do MC ou enfatizando o tom desafiador da proposta. Torna-se importante ressaltar que os conteúdos e as práticas estão em intensa mudança. Tratando-se do rap e da cultura de batalhas no século 21, a internet e outras tecnologias para a música e as festas de rua estimulam a circulação de variadas referências e focos de produção no país todo (TEPERMAN, 2015). Sobretudo, precisamos atentar para uma prática coletiva que ganha novos contornos em interações presenciais e por meio das redes sociais em perfis e páginas que divulgam a batalha e permitem a articulação com outros contextos de realização. O cotidiano apresenta uma estratégia artística que faz convergir, em uma área central da cidade, o encontro de adolescentes e jovens de vários bairros tanto de Juazeiro quanto de Petrolina. Nesse sentido, o público cativo se fixa no espaço urbano para a arte e, diferentemente, dos registros já exibidos nesta pesquisa, as pessoas não atravessam rapidamente esse espaço em uma fruição transitória. Esta é a situação colaborativa e organizada que se dá sem participação direta do poder público, mas que precisa estar em recorrente diálogo com este último. Reconhecemos a construção do diálogo na medida em que nem todas as circunstâncias são de conflito social, apesar do contexto ser simbólica e efetivamente de reconhecimento micropolítico. O rap como manifestação de rua é uma vivência que se impõe na conversa que tivemos, por exemplo, com MC 2M. Quando perguntado sobre o dia-dia dos músicos de rua entre Petrolina e Juazeiro, ele foca nas dificuldades: “é uma situação muito precária porque a prefeitura não ajuda e a gente tem que fazer com o nosso próprio dinheiro, a gente tem que correr atrás e, ainda, é uma coisa muito mal vista aqui porque, na região, como é Bahia, eles preferem Axé, Pagode, mas a gente tá com o Rap aqui mostrando mensagem, passando a nossa visão. Porque, querendo ou não, batalha, músico, rapper, é liberdade de expressão. A gente expressa o que a gente sente e o que a gente pensa sobre toda a situação”. Ao estender sua percepção sobre a música e a arte nos espaços populares no restante do país, 2M inclui perspectivas da indústria musical e de carreira profissional: “No país em si é uma coisa muito desvalorizada porque quando o pessoal vê um artista de rua já fala que é malandro, que não presta e que nunca vai subir na vida. E a gente está correndo atrás, a gente tá dando o melhor e é a mesma coisa de outras pessoas que fazem em estúdio...que são grandes astros, sempre começaram de baixo. E o que a gente faz pra viver? A gente tem que trabalhar entre outras coisas porque ainda não dá para viver com nossa arte, nossa música, nossa batalha”. Enquanto processo coletivo, o rap e as batalhas exigem muito da dedicação de seus integrantes. A prática não se resume a um momento de lazer ou diversão, dedica-se tempo de aprimoramento no improviso, de divulgação dos eventos e para arregimentar colaboradores. No entanto, a fala que enfatiza tantas precariedades, também, foca a natureza social do trabalho desenvolvido. Perguntado sobre como é o convívio ao ar livre e como é fazer poesia para tanta gente, M2 afirma que “isso é a primeira lei do Rap. O Rap prega a união. Então, agente não importa com gênero, não importa com cor, não importa com nada (sic). Você vindo com a sua ideia, a gente vai com a nossa ideia. Vamos nos juntar e fazer o movimento crescer”. Por falar nas questões inclusivas e participativas, nós não presenciamos batalhas com mulheres MCs naquela noite. As garotas estavam na plateia ajudando a formar a roda. Dentre elas, conversamos com Ana Luisa Jesus que é estudante do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) na UNIVASF. A estudante reitera a omissão das políticas públicas de cultura e educação diante do desenvolvimento da juventude das periferias na cidade. Em suas palavras, trata-se de uma “ação muito independente de, tipo, tomar a iniciativa para poder fazer o movimento” e que “no sentido de política pública, a gente não vê absolutamente nada”. Ana Luisa traz um olhar positivo, também, sobre a iniciativa do grupo: “eu acho massa, assim, essa coisa independente dos meninos, mas eu acho que no sentido de autonomia dos jovens aqui tem sido muito mais efetivo do que a questão política, a questão pública mesmo”. Como futura professora, nossa entrevistada ressalta a perda de um potencial pedagógico e inclusivo que poderia ser estruturado a partir do tipo de arena de conhecimento e de trocas que se estabelece na pista de skate da orla. Uma dicotomia, contudo, caracteriza-se na presença/ausência do Estado e da Ordem Pública. O tema da repressão aparece em algumas conversas que realizamos durante o nosso registro. Alguns MCs ressaltaram que a Batalha da Pista, antes, acontecia em Petrolina, mas a quantidade de intervenções policiais fez o coletivo transferir para Juazeiro. Perguntado se havia mais repressão do lado pernambucano do que do lado baiano, o MC PH Ácido responde que “com certeza. Pernambuco é conservador pra caramba. Muito ‘branco’, muito misógino, bem mais problemático do que a Bahia”. Questionamos, em seguida, o motivo dessa diferença observada pelo MC em sua vivência e, na sua avaliação, “tem um processo de dominação política de uma elite reacionária há mais de 500 anos do lado de Petrolina. (...). Então, a polícia serve  como mecanismo de repressão dessa elite reacionária que está sempre no poder em Petrolina”. Essa problemática esteve presente, também, na fala do MC Bruxo ao responder se sentia repressão policial. Nesse sentido, o entrevistado vai além do preconceito com a arte nas ruas e acrescenta o racismo em sua percepção: “Sim, nós sente (sic), sente muito, tá ligado? Quando sai da Batalha...eu sou muito de boa, vou pelo caminho mais de boa, vou com minha namorada, tá ligado? Aí, a polícia (sic) embaça menos. Mas, amigo meu que é mais preto que eu, (...), aí...a polícia já foi, tá ligado, enquadra mesmo. Isso é chato, não respeita muito essa ideia”. Vale ressaltar que a organização coletiva amadureceu sua estratégias de ação e de negociação com esses poderes externos ao fazer artístico. Como nos contou o MC Bruxo, a organização da Batalha conseguiu dialogar com policiais e com vizinhos da pista e passaram a ser aceitos sem maiores impedimentos. O que podemos entender é que a cultura como instrumental para pertencimento e identidade simbólica dos atores sociais envolvidos é uma condição para a manutenção das rodas ou batalhas de rap enquanto circuitos de fala, visibilidade e representatividade desses jovens, ressaltando a capacidade de articulação e negociação em espaços públicos. Entre outras camadas de interpretação dos fatos cotidianos, os MCs elaboram, também, uma concepção política, na dimensão do discurso como prática, da poesia e da arte. Questionado sobre a importância da relação entre poesia, política e arte nas ruas, PH Ácido responde que elas são “completamente imbrincadas. Elas não deixam de confluir uma na outra porque, na rua, é onde tem a democratização da informação, onde pode ter o acesso à cultura e o artista não pode deixar de estar na rua manifestando seu pensamento político, seja da forma que for. É muito importante em vários sentidos”. Justamente as ideias de negociação do espaço público e de democratização entrelaçam a busca de apoio financeiro com a busca por liberdade de expressão. Sobre as contribuições que a Batalha recebe, 2M esclarece que o esquema é “mais colaborativo. A batalha não precisa de tantos recursos, mas a gente precisa muito de equipamento. Então, como tem um pouco de público, a gente sempre pede ‘traga dois Reais, traga três’ para poder juntar e a gente poder comprar nossos equipamentos, porque era para ser uma coisa da prefeitura. A prefeitura é que deveria ajudar os artistas de rua porque é nossa cultura, nossa vida aqui que a gente faz”. Enquanto forma poética e prática cidadã, a Batalha chamou atenção de Bruxo, por exemplo, como oportunidade de suprir o que falta em outras instância de sua vida: “Ah, velho, a ideia de vir pra rua foi por causa, tipo...sempre gostei, tá ligado, de arte de rua, grafite, sempre apoiei a questão da rima, sempre fui uma pessoa bem poética. Aí, eu via na rua o que eu não via na escola. Na escola, eu não conseguia ver aquele lado poético, aquele lado artístico e, na rua, eu via”. Podemos dizer que nessa apreensão poética dos acontecimentos dos espaços populares, também, reside boa parte das considerações de cunho pedagógico levantadas, anteriormente, por Ana Luisa: “Eu estou fazendo licenciatura e, como eu trabalho muito com jovens, eu vejo como a juventude é muito incompreendida. A juventude é uma parte da vida muito capaz e mostrar coisas muito interessantes para a sociedade porque eles estão em fase de socialização, de expansão, e, nesse momento aqui, eles estão colocando ambições deles, vontades, desejos de poder e de conseguir coisas. De enfrentamento político (...). As coisas que eles falam aqui, às vezes, eles não podem falar, por exemplo, numa sala de aula. Não tem um outro espaço para eles estarem colocando essas coisas. Então, eu acho que é uma questão de tribo mesmo, de você encontrar uma tribo, um conjunto, um coletivo para você colaborar. Mas que tem essa questão do coletivo e do uso público também”. Na Batalha da Pista de Juazeiro, assim como em muitas outras rodas de MCs, a poesia e a música não estão apenas para passar e atravessar os campos de interação popular. Estão, sobretudo, para a criação de um novo espaço/relação, uma estética/política cotidiana e novas articulações/pertencimento. Boas Leituras: CURA, Tayanne Fernandes. Tramas do rap: um olhar sobre o movimento das rodas culturais e a questão de gênero nas batalhas de rima e slams de poesia no Rio de Janeiro. Intercom, Curitiba, 2017, pp. 01 a 15; TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.


Música Ambiental e Ecologia Humana

Ao longo de uma pesquisa de campo que se dá na transição entre espaços e narrativas de vida, o objeto de estudo, previamente definido, vai se expandindo conceitualmente e evidenciando suas variações a partir dos contextos sociais de realização. Considerando que, a princípio, nosso foco investigativo são os(as) artistas da música que percorrem os espaços populares como prática profissional e fonte de renda, podemos dizer que, na ação “Música Ambiental e Ecologia Humana”, os músicos compositores Roberto Possidio e Tainahakã Alves exercem uma diferente lógica de experimentação da música em um território coletivo que, no caso, trata-se de uma praça na cidade de Petrolina (PE). https://youtu.be/IIUDViuB1kc Na noite do dia 18 de outubro de 2019, registramos mais um dia de atividade do referido projeto cultural, no bairro Maria Auxiliadora, em frente ao Bar Nós Dois que apoia a ação dos músicos e, dessa forma, garante uma atração artística para seus clientes. Sobre o ambiente urbano visitado, podemos dizer que, após manhãs e tardes de intenso calor, Petrolina é tomada, nesse período, por noites de temperatura mais amena e brisa um pouco mais refrescante. Essa tênue mudança, em uma sexta-feira, atrai um público interessado em encontros, interações, papos, cerveja e, também, em música ao vivo. Aos poucos, vamos percebendo que se trata de experienciar o convívio já estabelecido na referida área, onde as mesas e cadeiras do bar vão invadindo a pracinha e desenvolvendo uma plateia para o evento que ainda está sendo montado com equipamentos de som e instrumentos testados e afinados abaixo de uma das árvores que serve de abrigo e cenário. Os dois compositores se preparam para tocar violão, cantar e serem acompanhados por Cleybson Bolão (Cleybson Barros de Souza) na percussão. Como forma introjetada de viver e pertencer à cidade, a ideia de apresentar músicas autorais e de outros compositores, locais ou não, surgiu pela identificação que tais artistas tiveram com a situação despretensiosa de boemia que a praça ocupada revelou. Nesse sentido, a musicalidade que atravessa o cotidiano dos nossos entrevistados leva à observação da naturalidade com que as circunstância artísticas são engendradas em coletividade. Entre processo de educação musical e práticas de exibição da própria obra, os significados que o músico atribui à sua história e às suas escolhas são fundamentais para entendermos a normatização e, também, a transformação dos usos sociais propostos. Iniciando pelo diálogo que estabelecemos com Tainahakã Alves (34 anos), a sua abertura para referências culturais está associada à geografia da região do Sertão do São Francisco. O artista se define “natural de Petrolina e Juazeiro, (...), porque é difícil a gente ser de uma das duas só. Mas, nasci em Petrolina e convivo com essa coisa PEBA – Pernambuco e Bahia – e me sinto um pouco de cada um”. Trabalhando nas duas cidades, Tainahakã divide a atuação como músico (compositor, cantor e DJ) com a de editor de vídeos. Por essa trilha, a arte tem lugar privilegiado em sua formação profissional passando por diferentes cidades. Iniciou sua educação musical pelo estudo do violão nylon e da guitarra, principalmente, para acompanhar o sua voz ao cantar. Em pouco tempo, percebeu a necessidade de uma formação escolarizada após um começo como autodidata: “eu vi que a gente aprende mais rápido a partir de outras pessoas, buscando o conhecimento com outras pessoas. Aí, fui fazer aula de canto, busquei um professor de violão. Fui pra UFBA, em Salvador, estudar canto. Depois, eu fui pra Recife, entrei no Conservatório [Pernambucano] de Música no curso de Composição Técnica. Fui buscando sempre aprimorar baseado no conhecer de outras pessoas”. O conhecimento voltado para a execução técnica do instrumento e composição passa a ser complementado pela vivência dos circuitos musicais de maneira independente. Entre as convenções da produção de shows, concertos etc., e as imprevisibilidades dos espaços públicos, Tainahakã identifica um pertencimento que flui entre as duas esferas de ação – “Então, eu acredito que, assim... todo músico é da rua, ele precisa ser da rua, ele precisa estar em contato com as pessoas e...ora a gente está em palcos mais estruturados e tal, com som mais bacana, ora a gente tá, assim, na praça. Eu não sei...eu me sinto bem fazendo música. Eu sou um cara que gosta da música no dia-dia, sabe? De ir para a casa do amigo tocar; - ‘Ah, vamo (sic) fazer um som na praça?’ – ‘Bora’. Mas, também, tenho o meu trabalho. Desenvolvo um trabalho de criação musical, mantenho atualizado um canal no YouTube com videoclipes, singles e, também, faço uma produção atrás de shows maiores com estrutura mais equipada”. Por este viés, podemos entender que a intenção de se apresentar tão próximo ao público, como em uma praça, não está ligada à necessidade de sobrevivência, ganhar dinheiro, mas de se testar enquanto artista que busca o aprimoramento nas distintas práticas de mercado e sem esquecer das atuais redes sociais como meios de divulgação. O artista, portanto, coloca-se na transição entre tocar/criar no cotidiano mais prosaico, mais intimista, e se expor nas diferentes configurações de contato com o público. Ao comparar o ato de se apresentar em um show tecnicamente mais complexo e o ato independente de tocar com amigos nos espaços coletivos, Tainahakã evidencia o compromisso diante de um mercado e de uma cadeia produtiva ligada à arte e ao entretenimento, no primeiro caso, e a vivência despreocupada com resultados e retornos financeiros na segunda situação: “Talvez o evento mais estruturado tenha uma responsabilidade porque envolve muitas pessoas que estão trabalhando naquilo e cria uma expectativa, também, maior – o som grande, as luzes, a banda precisa de mais tempo. É todo um investimento, preparação dos músicos e escolher repertório. Talvez, um momento como esse, a rua [aponta para a praça], assim, uma coisa mais despretensiosa... particularmente, eu gosto muito...dessa coisa da jam session, do jazz, de você improvisar, eu gosto disso. A rua tem isso, essa despretensão da apresentação”. Essa despreocupação expressada no território da ação aberta ao contato com as pessoas tem a ver com o surgimento do próprio projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana” que vamos conhecer um pouco melhor. “Esse projeto surgiu com a ideia de ocupar a praça, mas logo a gente percebeu que precisava conseguir uma licitação da Prefeitura (...), aí, a gente pensou em um...em alguma ideia que pudesse vir por trás pra unir isso que a gente  está fazendo aqui, né? Por trás ou pela frente [risos], mas uma ideia que pudesse formalizar tudo isso e a gente poder apresentar um projeto na Prefeitura”. A estratégia para obter autorização da Prefeitura de Petrolina – para ocupar um pequeno espaço na praça com instrumentos, caixas de som, cabos, mesa de som, microfones – foi uma necessidade imposta após a primeira apresentação ter sido interrompida por policiais que circulavam no local. Diante dessa ordem de controle do uso do lugar comum a todos, a ação espontânea teve que se tornar um “projeto” e, consequentemente, um conceito artístico para evitar maiores problemas. “E, aí, Roberto Possidio, que é engenheiro ambiental, teve a ideia de fazer o ‘Música Ambiental e Ecologia Humana’ que, tipo assim, não é um evento de meio ambiente, mas que, talvez, é também (sic). A galera faz ‘ah, música ambiental’, mas a música ambiental é uma música que compõe o ambiente, o ambiente urbano também”. Nesse sentido, a primeira parte do nome do projeto, entre outras interpretações, é uma referência às intervenções sonoras que fazem parte da rua, onde sobreposições de ruídos e musicalidades estão presentes e em movimento. Dando continuidade, Tainahakã afirma: “Aqui tem árvores, tem pessoas. Mas, quando a gente fala em ‘Ecologia Humana’, isso é o que tá dentro da gente também, é essa higiene mental, né? E que a música ajuda tanto as pessoas, também, a... sentir. A música ajuda a gente a sentir, eu acho. E eu curti bastante porque me dá espaço para mostrar o meu trabalho autoral também. Não só minhas músicas, mas músicas de compositores amigos, também, que são músicas novas e inéditas que eu escolhi para cantar. E, aqui, eu tenho esse espaço e isso me fez vir”. Mais uma vez, o músico expõe a complementaridade entre os universos particular/subjetivo e exterior/compartilhado em uma circunstância em que a mencionada “despretensão da rua” precisou agregar um tipo de formalização em projeto apresentado à Prefeitura, mas sem perder a sensação de tocar sem grandes cobranças. Isso resulta em alternativa para testar a reação das pessoas diante das composições próprias e do circuito de amigos/artistas com os quais convive. Quando perguntado sobre as interações nos espaços populares, onde a relação com o dinheiro/consumo não é imperativa, Tainahakã reforça sua percepção sobre o sentimento de “liberdade”: “Sim, total, porque é um palco aberto, a rua. Sempre vai ter pessoas na rua, alguém pra te ver e tudo. Eu gosto de sair do lugar de conforto, também, né? De estar em um polco em que você é o foco da atenção. Na rua, a gente precisa buscar a atenção das pessoas de uma forma, até, diferente talvez. É difícil explicar, mas eu acho importante também porque pega as pessoas de surpresa, né? Você tá passando aqui, de repente, vê o cara e gosta. Então, é um meio democrático...por enquanto. Eu sei que tem vários países que é proibido. Você não pode chegar em qualquer lugar e começar a tocar o violão...não é assim. Aqui, no Brasil mesmo, tem casos, gente que tá tocando no metrô aqui, acolá e, na própria praça, é reprimido por isso. Mas, ainda é uma forma democrática de você, talvez, mostrar seu trabalho para um público (...), tem sempre um público disposto a absorver aquela coisa”. Dessa forma, o projeto executado na praça se torna uma prática de formação de público tanto para a produção autoral dos artistas envolvidos, quanto para a própria circunstância de vivência musical no território público, gerando uma prática que alimenta e cativa o interesse pela arte nas ruas. Tais percepções se fizeram presentes, também, na entrevista que realizamos com Roberto Possidio (54 anos), idealizador da ação. Possidio é engenheiro agrônomo e trabalha com consultoria ambiental, o que indica que a música não é sua única fonte de renda. Brevemente, ele nos contou que o seu encontro pessoal com a música se deu como forma de socialização na infância e adolescência e que, depois, passou a adentrar contextos mais próximos da profissionalização: “Eu comecei a tocar violão com oito anos de idade. Com doze anos, já tocava nas festinhas da escola (...). Comecei a tocar à noite com vinte e poucos anos de idade com uma amiga que, hoje, é da televisão e do rádio. Numa época, a gente começou a tocar juntos, eu acompanhava ela. Depois, eu comecei a cantar também. Aí, fui morar em Salvador, depois passei dezenove anos em Salvador, voltei pra cá oito anos e tocando também. E, agora, principalmente, tocando, que é o que eu gosto mais de fazer”. A noção de socialização por meio da música permanece na narrativa de Possidio ao explicar o surgimento do projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana”: “Então, a gente começou a frequentar essa praça onde vêm os amigos, principalmente, no final da noite. É um lugar legal, um lugar bacana, arborizado, um pessoal legal que aparece aqui. A gente teve a ideia de fazer um som. A primeira vez, a gente trouxe o equipamento e botou aí na praça, falou com João [dono do bar Nós Dois], ele ‘tudo bem’ e tal. Tocamos no tempo que deu, a polícia chegou e pediu para parar e a gente tocou mais um tempo e tal. Mas foi tranquilo. Então, a gente resolveu fazer um projeto que abrange a questão ambiental também, que é minha área, e a gente convocou alguns amigos que trabalham com isso, né? (...), a gente tenta passar essa ideia da necessidade de preservação, não só. Mas as questões de interrelações humanas, né? Por isso que o nosso projeto é ‘Música Ambiental e Ecologia Humana’. Porque a gente tenta sempre lembrar dessas relações de consumo, os limites do planeta e por aí vai. E a música permeando tudo isso”. Em tal depoimento, ouvimos pela primeira vez, em Petrolina, o tema das imposições da Ordem Pública, a partir da ação policial, ser mencionado de forma espontânea por um músico que atua em uma situação artística na rua. Neste caso, fica evidente que se tratou de uma abordagem controlada por parte dos agentes policiais que, como indicado pelos entrevistados, não criminalizaram a prática musical, apesar de exigirem a interrupção. O episódio faz com que a ação coletiva espontânea, marcada pela amizade e interesse pela música, torne-se um projeto com conceito que possa ser defendido diante da administração municipal, como narrado anteriormente por Tainahakã. Dessa forma, uma realização que parecia sem objetivação definida teve que tomar o corpo de um projeto de arte e de concepção, também, conscientizadora. Por este viés, a busca por um bom convívio com a Ordem municipal só é possível mediante a prévia compreensão que os artistas tiveram das regras regulamentadoras do direito de ocupar uma praça da cidade com arte. O que se tornou possível, também, por meio da formação acadêmica dos músicos/produtores e do arcabouço de conhecimento estruturador dos argumentos que justificam o projeto e o legitimam como experiência comunitária local. Na fala de Possidio acima exposta, a música, que era a motivação principal, atua “permeando tudo isso”. Não entenderemos, necessariamente, como uma descaracterização da ideia inicial, mas, sim, como um desdobramento a partir de implicações vindas de um poder externo à arte. Diante deste caso, podemos considerar que as interações e compartilhamentos da situação estética, nos espaços populares, podem ser diretamente influenciadas por controles sociais que direcionam as negociações entre agentes/atores socias e, até mesmo, as formas de fruição: como as pessoas podem ser acomodadas em uma praça? O uso de equipamento de som é permitido? Qual o volume adequado? Entre outras questões regulamentares. O que se torna imperativo compreender, nesse contexto específico, é que a vivência da prática artística como prática coletiva, para nossos entrevistados, depende do perfeito entendimento, por parte deles, sobre as normas de legalidade, participação e legitimação. Após tais considerações acerca do surgimento do projeto “Música Ambiental e Ecologia Humana”, é necessário enfatizar que a experimentação estética na rua é a temática que ganha maior profundidade em nossa entrevista na pesquisa de campo. Quando questionado sobre tantas polifonias urbanas e os desafios de executar música na rua, Possidio responde que “Realmente, é um processo de desprendimento de uma coisa que é fundamental para o músico que é o silêncio. Para você executar, o silêncio é uma coisa fundamental. E a gente tem que lidar com isso, né? A interrelação urbana. A gente tem que assimilar isso, também, e tolerar, até certo ponto, e fazer com que isso seja absorvido e vá normalmente dentro do som e vai fluindo tudo”. O compartilhamento estético é vivido, portanto, em suas descobertas e integrações cotidianas. Brevemente, o tema das contribuições, em dinheiro, que os artistas podem receber das pessoas que frequentam as mesas do bar aparece na descrição da parceria mantida com João, dono do estabelecimento, que assumiu o papel de recolher as colaborações dos clientes, no clássico ato de “passar o chapéu”. Dessa forma, a edição do projeto vai se desenvolvendo em meio à simplicidade das relações de amizade e companheirismo. Abaixo de uma das árvores, está montada uma mesa de som ligada, por cabos, a alguns equipamentos, como: a caixa de som, apoiada em um tripé, virada para o público; caixa de retorno para os músicos; outra caixa de som, no chão, voltada, também, para o público e três microfones apoiados em pedestais. Ou seja, monta-se, rapidamente, a estrutura para uma apresentação intimista que acompanha dois violões e instrumentos percussivos. Tainahakã começa as atividades tocando e cantando uma música autoral, “Tá bonito pra chover”, acompanhado por Cleybson Bolão na percussão. Ao redor dos dois músicos, o movimento urbano (carros, motos e pessoas) não é tão intenso como pela manhã e as composições apresentadas revelam um “contato” estético com o Reggae, evidenciando-se o violão bem dedilhado, ou com o “lado B da música brasileira”, como o artista comunica ao seu público. Após algumas canções, Possidio chega ao “palco” para cantar e tocar violão em plena sintonia com a proposta musical iniciada, há alguns minutos, pelo amigo. Ao final de cada música, o público aplaude. O que diferencia, mais uma vez, a lógica de funcionamento do “Música Ambiental e Ecologia Humana” em comparação às demais interações entre artistas e transeuntes que marcam a nossa pesquisa. De forma geral, a ação se localiza dentro de um universo maior de práticas individuais em que nossos entrevistados não querem deixar a música fora de seus afazeres diários, sempre engendrando soluções entre a subjetividade e a profissionalização ou entre a intimidade dos afetos e a invenção dos “palcos” nas ruas. Roberto Possidio - Foto por Laura Sousa Boa leitura: BECKER, Howard S. “Mundos da Arte e Actividades Colectivas”. In: Mundos da Arte. Portugal: Livros Horizonte, 2010.


Raoni – no coração da multidão

Maria de Fátima da Silva do É nasceu em Santarém, município de Casa Nova (BA) às margens do São Francisco, e, aos 61 anos, é artisticamente conhecida como Raoni pelas ruas de Juazeiro (BA) e de Petrolina (PE). Há pouco mais de dois anos, ela iniciou sua atividade como compositora e cantora de lambadão nas áreas de comércio popular e nas proximidades dos bares e restaurantes da orla do grande rio. Integrando tais cenários, nossa personagem demonstra que ser artista nos espaços populares significa pensar em todos os detalhes de sua música e de sua performance, incluindo seu figurino. Blusa branca com modelagem que se ajusta ao pescoço, ombros à mostra e pequeno decote nas costas, saia igualmente branca com três camadas acima dos joelhos, lenço com miçangas amarrado na cintura, meia arrastão branca, sapatilhas vermelhas, óculos de sol com pedras brancas na armação, brincos com argolas douradas. Nos cabelos, grande arranjo preso em um coque com a mesma tonalidade da coloração dos fios. Encontramos, enfim, Raoni, em frente ao Paço Municipal de Juazeiro, a caminho da “multidão”! https://youtu.be/NCHnmPprzLk O prazer em cantar surgiu no seu universo particular de mãe, principalmente, quando brincava de se apresentar para seu filho mais novo chamado Raoni (com a pronúncia da tônica no “i”). Perto de completar quinze anos de idade, seu filho sofreu um acidente e iniciou sua “viagem” como ela prefere contar. Dessa forma, seu nome artístico é uma homenagem e uma forma de se sentir sempre perto do filho que partiu tão cedo. A descoberta da possibilidade de ser uma artista esbarrou em outro aspecto de sua história de vida: o ciúme do marido. Por anos, Raoni evitou se profissionalizar como cantora para evitar desgastes em seu casamento e ter que retornar à casa materna com uma mala nas mãos. Do campo afetivo para a adequação da prática profissional nas ruas, a cantora relaciona dois acontecimentos familiares: “Depois que ele [seu filho] viajou para a outra vida. Os dias foram passando, meu marido adoeceu, aí, demorou um bom tempo ele doente. Aí, quando foi agora, está dentro de dois anos, eu senti vontade de cantar”. Tal decisão veio ao lado da observância de suas reais possibilidades, como ela continua a relatar: “Porque eu não tinha dinheiro. E eu olhei pra mim, a minha idade, eu digo ‘não’. A única coisa que veio no meu pensamento: que eu saísse no meio da rua para que as pessoas me vissem o mais rápido possível pra que me considerassem cantora. Porque eu vim para cantar e vim para ser modelo também, duas coisas”. Ou seja, a real percepção de que a profissionalização está atrelada ao acesso a investimentos em pessoas e estrutura técnica fez Raoni criar, não apenas as letras e melodias de suas músicas, mas, sobretudo, sua própria forma de divulgação popular e seu processo de reconhecimento público como artista que, além de receber colaborações espontâneas, vende seus próprios CDs. A ação independente no entra e sai de ruas e esquinas é configurada com elementos que chamam a atenção até dos transeuntes mais apressados. Junto ao figurino e à performance, Raoni agrega uma caixa de som portátil, com entrada USB e conectada a um microfone, que ela carrega com desenvoltura enquanto canta e dança interagindo diretamente com os passantes. Do aparelho, sai a gravação da sua voz com bases eletrônicas em cima das quais Raoni canta, anuncia seu próprio nome e faz propaganda de seus produtos pelo citado microfone. Nossa cantora sabe se fazer notar e enseja uma persona totalmente condizente com as ruas de consumo popular que percorre. Sua expressividade e seu trabalho corporal despertam sorrisos, acenos, gargalhadas, gritos. É impossível ser indiferente. A via pública se transforma em uma passarela que ela domina, iluminada pelo potente sol do Sertão. Ao longo da intensa caminhada (o ritmo do andar de Raoni é surpreendente), nossa artista é um mulher na casa dos 60 anos que, de forma evidente, cuida de seu corpo, de sua resistência física e que combina uma comunicação lúdica com a sensualidade de sua dança junto à interpretação das letras de duplo sentido. Exatamente ao abordar sua forma de composição, a cantora conecta a arte das ruas à sua ligação com o rio que banha a região: “A letra da música do rio São Francisco é porque eu conheci muito o rio de quando eu comecei a crescer o meu entender. Na época, existiam os vapores do rio São Francisco, eu viajei muito de vapor. Então, eu falo muito do rio porque eu tenho muito a ver com o Rio São Francisco. E gravei, veio a letra da música da Piranha que mora dentro do rio. A piranha que mora dentro do rio é o peixe mais perigoso que mora dentro do rio. O que a piranha faz dentro do rio? ‘Ela só quer comer, hum hum, ela só quer morder. Essa piranha é boa’ [cantando]. É uma delícia. A piranha é boa, gostosa demais”. Tudo em Raoni é uma “assinatura”: sua música, seu figurino, sua corporeidade performática, suas frases de efeito como “delícia, Raoni!”, “ela é demais!”. Nesse contexto, como não olhar uma vitrine diante da qual ela se apresenta? Com essa motivação, lojistas a ajudam e fazem acordos para que se apresente por alguns segundos nas portas de suas lojas. Podemos perceber essa relação de parceria e de marketing na fala da vendedora Maria Lúcia da Silva: “Raoni é uma figura, né? Uma cantora muito boa e o pessoal aqui da rua gosta muito dela. Agora, há pouco tempo, assaltaram ela e alguns comerciantes ajudaram ela. Inclusive, o dono aqui da loja ajudou ela, também, a comprar o som dela”. A conotação de receptividade e amizade também transparece na fala de Geane da Silva Dias, gerente de uma ótica: “Rapaz, falar de Raoni é falar de um estouro em Juazeiro. Todo mundo é louco por Raoni. Onde Raoni passa, ela arrasta multidões, com certeza, e ela é top (sic). Carnaval...toda festa tem que ter Raoni”. De ponto em ponto comercial, nossa câmera gira acompanhando os movimentos da artista. As conexões entre propaganda popular e música para as massas se concretizam. Um de seus lambadões exige, por exemplo, uma coreografia específica para o trecho “Essa cabrita só quer comer, só quer comer, só quer comer (...) e tome macaxeira, tome macaxeira...tome, tome, tome, tome...ela é demais”. Nessa circunstância, abre-se a oportunidade para que o público decore a letra da música e reproduza, também, sua dança, como uma marca. Por falar em marca, o trabalho vocal de Raoni apresenta uma especificidade que ela explica de forma curiosa: “Quando foi um dia, eu estava na cama e uma vozinha no meu ouvido ‘cante, cante’. Eu digo ‘eu não sei cantar, não sei cantar’. Mas continua essa voz no meu ouvido. Aí, um dia, eu me levantei, eu digo ‘tá bom, eu vou cantar’. Fui para o muro e comecei a conversar com Deus, (...), falando o que tava (sic) acontecendo. Como eu ia cantar? Eu não tinha sanfona, não tinha violão, não tinha guitarra, não tinha piano, nada! Aí, os dias foram passando, eu senti vontade de mexer aqui [aponta para a garganta e cordas vocais]”. Assim ela começa a demonstrar o que chama de “Toque”. Um ruído sonoro ritmado e agudo começa a sair da sua garganta e que lembra, de forma excêntrica, uma guitarra de lambadão eletrônico. Ela faz os gestos de quem toca o instrumento e começa a intercalar o canto da letra com o “toque” anasalado: “Essa piranha é muito boa, ela é muito gostosa. (...). Ela só quer comer, ela só quer morder”, e faz a base final com o “toque”. Assim, Raoni descobriu há alguns anos sua forma de composição. Este é um desenvolvimento de criação que, dentro da lógica de formação do músico popular, associa dois tipos de escuta: a atenta e a intencional. Podemos compreender que, na ausência de instrumentos musicais e de quem os execute e ensine, Raoni passa a imitar vocalmente a sonoridade que buscava. A produção de variações melódicas passa para uma ação intencional em que a cantora se baseia em seu próprio conhecimento sobre o gênero musical que almeja desempenhar. Esta criação de si na ambiência artística das ruas se dá junto à consciência de que é preciso se destacar e vencer todos os apelos sonoros e visuais que a rodeiam. O que consideramos, aqui, é toda a ação artística que precisa ser inventada e implementada nos espaços públicos de vivência diante de uma participação coletiva que, muitas vezes,  não supõe a compreensão da natureza profissional que se dá nas apresentações. Sobre o reconhecimento, ou sua ausência, tanto pelos cidadãos quanto por políticas de cultura, conversamos brevemente com Josinaldo Cícero da Superintendência de Eventos da Secretaria de Cultura de Juazeiro. Perguntado, primeiramente, sobre o que pensa acerca dos músicos que se apresentam nas ruas, Josinaldo afirma que considera essa prática “Legal. Assim...anima as praças, anima a rua, anima o povo da cidade e Raoni tem esse exemplo (sic) que já foi na TV, foi chamada, está conhecida na cidade. (...). Muito divertido e, também, um artista (sic) lúdico, cheio (sic) de alegria, que traz o riso das pessoas, também, além da musicalidade que ela propõe às pessoas na rua que passam por ela”. Nota-se que a arte de Raoni é observada, até mesmo por representantes da Secretaria de Cultura do município, como uma ação de puro entretenimento ou distração diante do cotidiano, como se não engendrasse uma série de conexões entre os campos da indústria fonográfica e da criação independente ou como se a referida ação estivesse envolta em uma proposta inocente, digamos assim, da arte. Diretamente questionado sobre se há a possibilidade de uma política municipal de apoio aos músicos e outros artistas dos espaços populares, Josinaldo Cícero afirma que “Ainda não, mas eu acho importante incluir o trabalho deles e reconhecer o trabalho que eles fazem para a cidade. Não só a questão da música, mas ter um respeito com as pessoas que ficam nos semáforos jogando malabares, cuspindo fogo e o pessoal que vem abrilhantar. Na verdade, assim, é uma arte de graça para as pessoas, né? Além das pessoas que contribuem, as pessoas que não contribuem, nas ruas, aproveitam também do show que eles fazem (...). Então, assim, é importante a gente reconhecer e dar o espaço para eles ficarem à vontade para se apresentar”. Os encontros entre músico/cantor com as pessoas se dá nessa abertura interacional que, a priori, não encontra barreiras físicas ou simbólicas e os sentidos de reconhecimento e valorização da arte passam, muitas vezes, por trocas afetivas e diálogos. Quando perguntada sobre a importância que as ruas têm para sua vida e seu trabalho, Raoni nos dá uma explicação bem particular: “Desde quando eu comecei a fazer, eu achei muito gostoso. Porque você vai encontrar  muitas pessoas tristes e, na hora, em que eu entro, que eu vejo uma multidão de gente, eu me preparo, boto o meu som baixo, Deus me prepara em tudo, e eu saio passando no meio do povo, cantando como nada está acontecendo (sic). Então, muita gente me puxa e me diz ‘olhe, você me salvou’. (...). Aí, nós nos abraçamos. A gente se abraça e pronto”. Dessa forma, Raoni assume e demonstra um objetivo comunitário para o seu canto, sua performance, suas músicas e continua: “Então, eu fico feliz, muito feliz. Não me arrependo do que eu fiz, faria tudo de novo porque eu estou lavando o coração da multidão com muita alegria, muita alegria e muita alegria. Eu não estou arrependida e nunca vou me arrepender, faria tudo de novo”. Na complementaridade entre sua história de vida e sua recente trajetória, Raoni faz mais do que entreter e provocar sensações de “alegria”. Raoni desestabiliza as comuns barreiras para a iniciação artística de uma mulher sertaneja e de idade mais avançada do que é considerado normal para a particular expressão que ela exerce. Sua resistência pessoal, diante dos limites impostos pelo seu casamento e o entendimento tradicional do papel das mulheres, expande-se em um tipo de noção do espetáculo para as ruas, enfrentando o ainda inconsistente apoio social, mas recriando nossas percepções sobre o encontro do artista com suas multidões.


As Travessias de Diassis Torres

O projeto O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares, atualmente, está se desenvolvendo em um percurso pelas quatro Macrorregiões do Estado de Pernambuco e nossa primeira parada foi no Sertão do São Francisco, mais precisamente em Petrolina e seu entorno. Ao longo de quatro meses, vamos registrar a atuação de músicos, bandas, cantores/cantadores/poetas que se apresentam nos espaços populares, também, no Agreste, na Zona da Mata e na Região Metropolitana do Recife, com incentivo do Funcultura da Música (Fundarpe, Secretaria de Cultura – Governo de Pernambuco). Como resultado, sempre divulgaremos o conteúdo em audiovisual, textos e imagens no nosso site e em nossas redes sociais. A cidade de Petrolina e sua região entrou em nossa rota para contribuir com o quadro de referenciais urbanos que interligam pessoas de diferentes origens em um contexto paradoxal de relevância econômica com desigualdades sociais, onde surgem expressões artísticas de resistência popular e, também, de mergulho experimental em constante diálogo com o mundo. Em sua paisagem, a verticalização imobiliária circunda os laços cotidianos que as pessoas mantêm com o rio São Francisco para locomoção, lazer, comércio, turismo, contemplação e, também, para as artes das ruas. Logo em nosso primeiro dia de pesquisa de campo (16/10/2019), tivemos conhecimento de que o compositor Francisco de Assis da Silva, artisticamente conhecido como Diassis Torres, estava tocando seu violão e cantando em Juazeiro (BA). Realizamos, portanto, nosso primeiro traslado em uma das barcas que navegam o grande rio como transporte coletivo e que nos levou direto para o centro da cidade vizinha a Petrolina. Em poucos minutos, encontramos Diassis Torres se apresentando diante de uma casa lotérica localizada em frente à Praça Barão do Rio Branco, uma movimentada área comercial e, também, próxima ao Paço Municipal e agências bancárias. A engrenagem dos acordos entre a prática musical e a paisagem que lhe serve de cenário já dá a noção da mistura de sons e ruídos que ronda o trabalho de um músico que se apresenta nos espaços populares. https://youtu.be/3nl86cyr3OE Motores, buzinas, vendedores ambulantes, anúncios em carros de som e muitas vozes atravessam a música e o canto de Diassis Torres e, consequentemente, invadem nossa captação de áudio durante o registro, o que nos faz entender que esta é uma implicação que caracteriza uma pesquisa dessa natureza. Caracteriza, sobretudo, a fruição da música nos ambientes públicos. Dessa forma, procuramos não minimizar o caos sonoro e o mantemos, na produção audiovisual, como um dado estético e de vivência coletiva importante para entendermos essa ação cultural. Como em qualquer “palco”, o artista busca o melhor posicionamento corporal diante do público. Nesse sentido, Diassis se localiza encostado no corrimão da rampa de entrada da lotérica e se coloca de frente para os clientes que entram e saem da loja. Apresenta-se apenas com o violão e deixa aberta uma caixinha de papelão um pouco diante dos seus pés para receber colaborações dos passantes. O fato de ser uma casa lotérica já indica a intenção de poder receber moedas provenientes de trocos ou, quem sabe, maiores valores. Esse primeiro momento revela, também, o seu estilo gospel adotado em composições próprias e de outros autores desta vertente musical na região. A quantidade de transeuntes é grande e, ao anunciar o nome da música que está prestes a cantar, Diassis fala uma breve mensagem religiosa que justifica sua escolha de repertório. As melodias executadas carregam o conservadorismo que condiz com a ascese religiosa e privilegia a letra cantada com segurança e com uma empostação de voz que dispensa, por exemplo, o uso de um microfone para chamar atenção do público. Percebemos que as pessoas que comungam da mesma religiosidade fazem questão de cantarolar ou, até mesmo, cantar junto a Diassis Torres que se dedica exclusivamente ao projeto pessoal de reverberação dessa mensagem cristã ligada às igrejas pentecostais. Diante das manifestações de participação e/ou de aceitação, o cantor troca olhares, sorri e agradece as colaborações em dinheiro com um cumprimento corporal. Sem parar de cantar, Diassis Torres vai estabelecendo uma comunicação que demonstra sua experiência e traquejo, até mesmo, com os admiradores mais empolgados e atende aos pedidos para tocar músicas específicas. Com a aproximação de nossa câmera e microfone, que estavam um pouco distanciados, o artista não se incomoda e mantem sua postura com tranquilidade, como quem já tem certa intimidade com esse tipo de equipamento. A expressão do artista, enquanto interpreta as canções, demonstra sintonia com as letras das composições que carregam uma percepção positiva sobre a fé religiosa defendida. Nesse sentido, palavras como “vitória”, “prosperidade” e “glória” são comuns em suas músicas que encontram um lugar de popularização no contexto de intenso movimento. Como dito, ele se coloca na calçada/rampa de acesso à casa lotérica e está de costas para a rua. Por detrás, o movimento de carros é intenso às dez horas da manhã e a forte luz do dia potencializa as cores e dá destaque ao antigo prédio do Paço Municipal. Pertencente ao cenário, Diassis, além de cantar diretamente para os passantes, está protegido do sol escaldante pelo toldo da porta da lotérica, o que indica mais um fator estratégico para a escolha do local. Apesar de todo o vai e vem ao redor, a cidade apresenta um ritmo que a faz estar entre a aceleração urbana e os hábitos mais tradicionais e, dessa forma, o espaço e os deslocamentos são receptivos ao tipo de canto que Diassis desempenha. A integração ao panorama de comportamentos resulta, repentinamente, na chegada de um cidadão que começa a cantar como quem quer reproduzir o mesmo tom vocal de Diassis e faz o músico dividir a “cena” com ele, como em um “dueto”. Além de cantar, o participante inicia um breve diálogo religioso que atravessa o canto do artista e, consequentemente, o nosso registro. Toda a circunstância é marcada por uma aceitação e valorização de uma específica temática religiosa que é reafirmada como uma qualidade para a atuação nas ruas. Por este viés, a interação e a ajuda em dinheiro dada ao artista estão ligadas à necessidade dos fieis demonstrarem socialmente o pertencimento à essa moral cristã abordada, o que ocasiona grande venda dos cds que Diassis Torres grava de forma independente e vende, também, durante suas apresentações. Maiores detalhes sobre a trajetória e o ofício do nosso artista/personagem nos foram passados por meio de uma entrevista que realizamos após o contato inicial. Nascido em Ouricuri (PE), Diassis mora há mais de dez anos em Petrolina e, desde os vinte anos de idade, o seu foco é o violão, apesar de conhecer uma base de contrabaixo e guitarra. Além de conseguir tirar o sustento de sua família com as apresentações nas ruas, canta na igreja evangélica que frequenta em Petrolina no bairro de São Gonçalo. De acordo com o seu relato, aquele foi o espaço social fundamental para descobrir uma “missão” com a música e vislumbrar uma carreira profissional. No entanto, sua narrativa de vida revela uma aproximação intuitiva com o instrumento musical em uma lógica de aprendizado comumente chamada de autodidatismo. Ele afirma que seu estudo se deu “naturalmente” e que não frequentou uma escola formal de música, tendo desenvolvido sua habilidade pegando “de ouvido” mesmo. Estamos lidando, na verdade, com um processo de formação do músico que envolve sentidos perceptivos do corpo – como audição, visão, tato e corporeidade – e da memória. Segundo Simone Lacorte Recôva, tal aprendizado informal passa pela Escuta Atenta (observação da execução harmônica que integra os atos de ouvir e de olhar como o instrumento é executado) e pela Escuta Intencional (aquela que leva à repetição de exercícios). Como um todo, a formação popular envolve contatos afetivos com pessoas do círculo íntimo do aprendiz e se estende à expressividade e ao uso de tecnologias para a criação e para o encontro direto com o público. No caso específico de Diassis Torres, a entrada da música no seu cotidiano se deu por meio de seus irmãos mais velhos que tinham violão em casa. Depois de ouvir muitas reclamações porque costumava desafinar os instrumentos em suas tentativas de memorizar as notas e canções, o jovem Francisco de Assis produziu seu próprio violão com flandre, como ele nos contou no seguinte trecho: “Encontrei o braço de um violão num lugar e, aí, fiz o restante do violão, coloquei umas cordas de nylon e comecei a dar as notas. Eu fiquei muito tempo com esse violãozinho que eu fiz, aprendi bastante nele”. Ao falar sobre como iniciou a compor, o cantor relata a sua entrada para a igreja e atribui sua criação musical a um “dom” desenvolvido depois que aceitou “O Senhor Jesus” na sua vida há mais de dezesseis anos. Essa elaboração de significado e da representação de si, enquanto artista, faz da história de vida uma travessia para um mundo social particular que envolve todos os objetivos da música como um trabalho/ofício e como fonte de renda para o nosso entrevistado. Exatamente a auto compreensão como artista profissional nas ruas é o dado que cruza a necessidade de sobrevivência com a idealização da propagação da mensagem religiosa. Quando perguntado sobre suas motivações para tocar e cantar em tais lugares, Diassis Torres responde que: “Foi um desejo do meu coração através...lendo a bíblia, sabe? Quando o Senhor Jesus diz que a gente devia ir, todo mundo, pregar o Evangelho a todos, né? E, assim, nasceu aquele desejo de mostrar o meu trabalho nas ruas e com o intuito de levar uma mensagem de esperança, uma mensagem de vida, para outras pessoas, também, através do louvor”. Esta justificativa está em consonância com a elevada aceitação social que a música gospel encontra e podemos entender isso quando perguntamos se o artista consegue se sustentar com o que ganha nas ruas espontaneamente e vendendo seus cds. Diante da questão, ele responde: “Então, já faz mais de cinco anos que eu deixei a área da borracharia e consigo sustentar a minha casa só através desse trabalho. Vendo meu cd, divulgo meu próprio cd. A gente, também, vende pendrive e as pessoas também contribuem com o nosso trabalho. Dão, assim, umas contribuições voluntárias e eu tenho, ultimamente, sustentado a minha casa com esse trabalho”. Conscientemente voltado para a vocação religiosa, Diassis Torres integra, também, a manutenção dos espaços populares como territórios da arte em prática coletiva que estimula participações e circuitos de ação por fora do mercado supervalorizado pelo senso comum. Assim, a música entrecruza outros níveis sensoriais como, por exemplo, na vivência da barca (transporte coletivo) como plataforma de apresentação. Nesse momento, outro sentido de travessia é agregado: a locomoção de uma cidade para a outra pelo rio. Nessa condição, a interação com o público muda e passa a ser de maior diálogo sobre os temas cantados. A relação muda porque a barca proporciona posicionamentos corporais quase semelhante aos que ocorrem em um teatro. Todos os passageiros se sentam voltados para a cabine e, à frente dela, Diassis Torres toca e canta. O que temos, então, é um artista diante de uma plateia que flutua sobre o rio São Francisco no deslocamento entre Juazeiro e Petrolina. O vento, a luminosidade, as aves, o ruído do motor, tudo passa a fazer parte da situação artística, tornando único aquele encontro. O público expõe sua diversidade entre a escuta atenta e a escuta distraída, entre o reconhecimento e o distanciamento. Contudo, a música, inegavelmente, invade o espaço-tempo de contemplação da natureza, de sentir o vento e de proximidade com a água caudalosa verde escura, onde a barca vai desenhando um caminho entre ilhotas, com densa vegetação, que contrastam com a grande ponte e os edifícios que dominam o horizonte. Ultrapassando o conteúdo mais evidente que uma expressão musical pode anunciar, a situação artística é produzida pelos diversos elementos naturais e humanos que se agregam em permanente transformação. Uma atuação profissional específica é exercida independente das regras do grande mercado do entretenimento e busca normas particulares de reconhecimento e permissão social para existir. A partir destas redefinições cotidianas, Diassis Torres propõe um projeto popular para a música vivenciando travessias. Boa leitura: RECÔVA, Simone Lacorte. “Aprendizagem do Músico Popular: um processo de percepção através dos sentidos?”. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília, 2006.


Encontros e percepções em trânsito

Pensar sobre a arte feita e exibida nas ruas é o mesmo que pensar sobre nossos hábitos interacionais nos lugares públicos. Principalmente, nos hábitos estabelecidos a partir das metrópoles ocidentais que viram suas populações crescerem e os usos e consumos nestes ambientes se transformarem. Não raro, personagens e histórias contadas por memorialistas passam a fazer parte do imaginário de contemplação das cidades, tais como as crônicas de João do Rio que, entre outros temas, abordou os “músicos ambulantes” no Rio de Janeiro da década de 1890. Entre encontros e percepções, interessa-nos, portanto, trazer à tona os sentidos das ações musicais e experimentações sonoras, onde as trocas relacionais envolvem todo o caos polifônico em torno do instrumentista e/ou cantor que se desafia diante de contextos em trânsito. Podemos dizer inicialmente que, há séculos, diversas culturas musicais são geradas e alimentadas nas ruas e demais territórios coletivos no mundo todo. A atualidade deste amplo fenômeno social-artístico põe em movimento a nossa pesquisa contínua intitulada O Palco é a Rua – A Música nos Espaços Populares. Para nós, os labirintos de pontes, calçadas, avenidas, praças, becos, parques, feiras, mercados, estações de metrô/trem/ônibus são entendidos como espaços populares por serem onde as pessoas se aglomeram e tornam corriqueiras grande quantidade de práticas e costumes. Em variados desenhos urbanos e com diferentes objetivos, as ruas estabelecem regras, também, para a presença da música como manifestação da coletividade ou como solução popular da vida em sociedade. A ideia de observar, fotografar, gravar e dialogar com músicos/cantores das ruas, investigando suas lógicas de atuação, nasceu da percepção de que o artista é um sujeito que propõe o espaço-tempo da sua obra e, dessa forma, reinventa circunstâncias comunitárias de vivência. Nesse sentido, esta pesquisa nasceu durante o nosso caminhar por grandes e pequenos cenários urbanos dentro e fora do Brasil. Como um diapasão entre nossas memórias afetivas e os encontros ocasionais com músicos, este projeto ganhou a fluidez que dissolve as fronteira entre campo de pesquisa e campo da vida. Em tantos percursos, nossa curiosidade e envolvimento cotidiano miraram um objeto de estudo e instigaram a criação de textos e vídeos autorais. A verdade é que ter as cidades e seus espaços populares como laboratório/palco exige uma série de procedimentos que estão sempre em redefinição, sempre abertos às normas maleáveis das sociabilidades interacionais. Enquanto pesquisa social, nossa ação adota o caráter empírico de aproximação com os artistas para conversas e entrevistas que objetivam entender suas atividades musicais como práticas que ensejam uma profissionalização nas ruas. Por isso mesmo, uma das questões abordadas é o contato com os transeuntes para obter contribuições espontâneas em dinheiro recolhido em caixas ou chapéus. Estamos nos referimos, portanto, a uma organização convencional e colaborativa de exibição e fruição que reconhece que a música também está presente nos espaços abertos e de forma independente. Mesmo excluídos do mercado da música, os músicos acolhidos pelas ruas absorvem e reproduzem tradições harmônicas e rítmicas que fazem suas práticas serem identificadas socialmente e acessadas sem barreiras ou empecilhos pré-definidos (apesar da comum repressão da “ordem pública” e do preconceito disseminado, por exemplo, no Brasil). Nos dias em que somos atentos andarilhos, todas as vias sensitivas estão aguçadas e a nossa escuta, sintonizada na música que emerge do burburinho, está atrelada ao olhar e à performance. Colocamos em processo, também, o olhar da câmera ora estática, ora móvel e que tem seu próprio discurso. Assim, estamos em deslocamentos físicos e perceptivos que podem ter a brevidade dos encontros mais fortuitos ou a generosidade do bate-papo mais longo. Ou seja, a rítmica envolvida na situação estética não é apenas melódica, mas é, também, dos corpos, dos gestos, das falas, dos ruídos, das pausas e das despedidas. Nos vários sentidos do ato de se deslocar, o artista tem a coragem de induzir partilhas sensíveis imprevisíveis e abertas às corporeidades e arquiteturas circundantes. Neste acontecimento é que reside a potência político-artística dos músicos/cantores/poetas que fazem da interação o meio fundamental de reconhecimento do seu trabalho, da expressividade e da transmissão do saber musical, além da venda de cds gravados com custos próprios e da divulgação em redes sociais na Internet. Contudo, a resistência neste ofício não garante que tais artistas sejam respeitados pelo senso comum ou que consigam se sustentar exclusivamente em seus “palcos” citadinos. Para além da qualidade técnica e das definições do “bom” ou “mau” gosto, entendemos que as histórias de vida apresentadas por nossos personagens revelam suas escolhas, motivações e dificuldades para o enfrentamento de uma rotina cheia de incertezas, mas sempre dedicada à música como um “chamado” irrecusável. Estas narrativas atravessam variadas paisagens sociais, fundamentam o modus operandi dos músicos e dão significados, criados por eles próprios, às performances instrumentais, à sobrevivência e às formas de (des)valorização dentro da lógica de apresentação nos espaços populares. Por fim, de tanto falar em sítios e traslados, vale ressaltar que o presente veículo de comunicação do nosso conteúdo vai além de um mapeamento de artistas e localidades, ele entrecruza linguagens e está em constante construção. Convidamos, então, o público interessado em acompanhar nossas incursões a se desprender de concepções pré-formuladas e a se deixar levar pelo vai e vem de tantos referenciais transitórios. Boas leituras: ACHUGAR, Hugo. Culpas e memórias nas modernidades locais: divagações a respeito de “o flâneur” de Walter Benjamin. In: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Orgs). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. BECKER, Howard S. Uma carreira como sociólogo da música. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 3, n. 1, jan. – jun. 2013, pp. 131 – 141. João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. https://youtu.be/aA4qLFY3258


Incentivo