Música e amizade – movimentos das ruas


Por Theia Produtores Associados em 09/ago/2021

Em nossa pesquisa sobre musicistas nos espaços públicos, tem se evidenciado a importância de incluir, em nossos trajetos, os bairros e as ruas marcados pela tradição do comércio popular nas cidades visitadas. Esses são territórios recorrentes em nossos registros no Estado de Pernambuco e não seria diferente em Caruaru (Agreste Central).

Nas proximidades do merco zero do município onde, por muito tempo, a sua famosa feira acontecia, ruas largas e estreitas vão compondo um complexo de lojas, mercados e pequenos comércios com os mais variados produtos. Justamente neste entorno, mais especificamente na rua Vinício Fernandes Lima, mais conhecida como Beco do Antigo Mercado de Farinha, pudemos conhecer a atuação de Vitória do Pife, Joyce Noelly, Maria Izadora e Ythalla Maraysa.

Tocando pífano, rabeca, zabumba, triângulo, pandeiro e pequenos instrumentos percussivos, as quatro artistas vivem uma fluida e cotidiana relação com a musicalidade popular do Agreste pernambucano. A amizade é o laço social que faz circular o interesse pela música entre elas e que impulsiona o profundo convívio com mestres e mestras que são referências na localidade.

No circuito caruaruense, como já mencionamos em textos anteriores, pudemos perceber que jovens artistas encontram nos ritmos tradicionais o contato com instrumentos acessíveis e com práticas de ensino/aprendizagem que acontecem por meio do diálogo, da observação, da dança e participação que afloram da cultura popular. Portanto, em um contexto de sujeitos que se abrem para as artes nas ruas, nossas entrevistadas trazem a música ora como ação profissional, como no caso de Vitória do Pife, ora como forma de enriquecimento pessoal, como no caso de Joyce Noelly. Independente das motivações individuais, o reconhecimento das ruas de Caruaru como potentes “palcos” incentiva as quatro amigas a transitarem pela variedade de expressões e linguagens que se fazem presentes.

No cenário do mencionado Beco do Antigo Mercado de Farinha, as tocadoras se localizam próximas a um alto muro, de frente para algumas lojas e para o público de transeuntes. No chão, capas e estojos dos instrumentos servem para apoiá-los e para recolher as contribuições espontâneas dos espectadores. Esse espaço, ao mesmo tempo que torna impossível ignorar a apresentação, também oferece uma propagação do som que favorece a atuação do quarteto que não utiliza microfones, caixas e outros equipamentos que amplifiquem o alcance sonoro.

Com este acolhimento funcional do beco, as artistas vão definindo o repertório enquanto tocam. Muitas vezes, elas mudam a música a ser executada com uma simples troca de olhares e, assim, os instrumentos também vão sendo compartilhados e todas vão buscando versatilidade e, com a mesma naturalidade, vão incorporando o Forró de Rabeca e o Coco entre os ritmos escolhidos.

Vitória do Pife, como o nome artístico já revela, tem construído uma trajetória como tocadora de pífano, sendo, também, uma incentivadora do instrumento entre os mais jovens na cidade (ver, por exemplo, depoimento de Carlos dos Ventos no conteúdo “Vai no Teu Tempo” presente neste site). Natural de Caruaru, Vitória iniciou suas atividades após comprar o primeiro pífano na oficina do mestre João do Pífano. Um de seus primeiros palcos urbanos foi um dos semáforos da cidade, onde tocou junto a amigos que são malabaristas. Contudo, a ida à rua para se apresentar não foi uma escolha completamente consciente quanto aos seus resultados.

Eu comecei bem espontaneamente, sem nenhuma pretensão. Daí, tinha amigos que trabalhavam no semáforo, eu andava com eles e, certo dia, eles falaram ‘pô, entra aí, vamo (sic) tocar também’ e, aí, foi rolando”.

Mesmo com a aparente naturalidade da descoberta do espaço público para suas performances, Vitória menciona que, logo no início, o estigma negativo que se assenta culturalmente na arte de rua é um desafio a ser enfrentado. Mesmo como tocadora de um instrumento tão conhecido na região, ela pode sentir diferentes reações à sua proposta de atuação e às de seus amigos.

É massa e, ao mesmo tempo, é difícil também. Na primeira vez que eu fui entrar, pra tocar no semáforo, eu fiquei com muito medo porque é intimidador, né? Ninguém se vê ali, naquele lugar. A mesma coisa é na rua, também. Às vezes, tem um olhar estranho, alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, também é muito massa de troca; de uma pessoa olhar para você e sair dançando. Mesmo que não dê nenhum dinheiro, mas rola sempre essa troca, falar com a pessoa e tal”.

Essa fala nos parece bem reveladora do quanto ainda os espaços públicos precisam ser defendidos como territórios artísticos mesmo entre agentes sociais que vivem da música, do circo, da dança, do teatro, da performance e tantas outras linguagens. Ao afirmar que “ninguém se vê ali, naquele lugar”, Vitória chama atenção para o fato de que a noção de trabalhar e viver da arte ainda está arraigada aos espaços institucionais e às grandes cadeias técnicas de montagem e exibição. Em sua concepção, a ideia de se profissionalizar nos espaços populares sofre o entrave imposto pelo senso comum que não atribui à esta atividade uma forma respeitável de obter retorno financeiro. Por outro lado, o objetivo de ganhar desenvoltura com o instrumento e com o público é, muitas vezes, alcançado nas calçadas, feiras, semáforos, etc.

As diferentes histórias de vida das quatro amigas revelam, também, estratégias criativas de engajamento em projetos sociais utilizando a música como forma de interação. Maria Izadora, natural de Arcoverde (PE) e integrante do coletivo “Riso da Terra” de agroecologia, cultura e educação popular, nos conta, por exemplo, como a música nos espaços públicos se tornou uma prática ligada aos seus objetivos sociais:

Eu participo de um coletivo, em Arcoverde, chamado “Riso da Terra” e a gente fazia a xepa, às quartas-feiras, e a gente trocava música, cultura e arte em troca de alimentos da feira que, geralmente, são desperdiçados também, né? Aí, eu fui aprendendo. Meu primeiro instrumento foi o ganzá, o ganzá maior. E foi uma das primeiras interações que eu tive com o público…porque ir pra feira cantar esperando…não esperando algo em troca, mas dando a música e sabendo que isso é um tipo de troca”.

A música, dentro da narrativa de Izadora, faz parte de uma proposta de diálogo que procurava, também, despertar a consciência dos próprios feirantes sobre a importância de colaborar com o coletivo e, ao mesmo tempo, sobre o entendimento da própria arte popular como um tipo de troca que pertence às vivências e economias que partilhamos nas ruas.

Esse é um contexto que promove mútuas interferências entre organização social colaborativa, a música nos espaços populares e a espontaneidade das amizades como forma de aprendizado; desdobrando-se em diferentes cidades, como podemos perceber na trajetória de Joyce Noelly. Natural de São Caetano (PE), ela é cozinheira e vive há mais de sete anos em Caruaru. A música não se mistura profundamente com sua principal profissão, mas se destacou como um interesse particular.

Sempre gostei de cantar, sempre gostei de música, mas não tive muito…não é que eu não tive muito acesso, mas eu acho que isso não estava muito vivo. Não sei explicar. Lá em São Caetano, tem a Fundação de Música e Vida que é muito forte, é um centro de formação musical popular, mas eu não tinha acesso por várias questões. Então, quando eu vim pra Caruaru (…), que tem essa movimentação popular tão forte, eu comecei a ter acesso. Comecei a ter amizade com pessoas que faziam música e isso foi quebrando as barreiras, sabe? Porque sempre teve uma barreira muito grande ou, até então, tinha uma barreira muito grande entre a música e eu; quem fazia música e eu que só consumia. Isso foi se quebrando aqui em Caruaru. Pelo movimento da Estação, pelo movimento do Pife, pelas bandas alternativas, pelo movimento da rua. Depois, eu fui estudar agroecologia lá em Glória do Goitá. Então, eu conheci um pouco do movimento cultural da Zona da Mata, do Cavalo Marinho, descobri a rabeca e me interessei muito”.

Valorizando o cenário cultural da cidade, Joyce Noelly menciona que suas companheiras artísticas já tocavam alguns instrumentos e destaca o papel de Vitória do Pife como incentivadora para que todas perdessem o medo e arriscassem a interação com o público. A realização deste objetivo é marcada pela perda da timidez e dos receios porque, como já afirmamos em conteúdos anteriores, o artista de rua é criador e receptor de uma situação socializada sem regras pré-estabelecidas e sem limites que separem o lugar de ocupação do artista e o lugar de ocupação do espectador.

Essa constituição diária de circunstâncias para a música e para o retorno financeiro, muitas vezes, se dá como uma quebra em relação à dinâmica convencional de outras atividades acumuladas; principalmente para quem não consegue sobreviver exclusivamente da rua. Sob essa perspectiva, Joyce esclarece que aquela ação musical sempre a faz lembrar da conotação de liberdade que precisa ser vivida e conhecida em suas peculiaridades. Contudo, quando questionada sobre como observa a situação das artes nos espaços públicos do país, sua colocação é crítica e, ao mesmo tempo, motivadora de reações:

O cerco está, cada vez, se fechando mais. Porque a galera marginaliza. (…) a galera acha que se você está na rua fazendo música é porque você não tem o que fazer, você não está trabalhando e marginaliza. Eu já vi casos muito fortes de repressão, ainda não passei por nenhum e espero não passar, mas acho que isso está cada vez mais comum. A desvalorização está cada vez maior, mas eu acho que sempre que tem um movimento forte em algo, como essa repressão está cada vez mais forte, o movimento contrário também é cada vez mais forte. Então, a libertação e a luta pela liberdade, pela arte também se fortalece, mas a muito custo”.

Nesta colocação, o termo “galera” pode ser atribuído, também, a distintas instituições que impõem uma visão autoritária e, muitas vezes, distorcida sobre a ação musical nos espaços populares. Estamos falando, por exemplo, dos órgãos de segurança e fiscalização, das secretarias de cultura que não dialogam com os artistas das ruas, do esfacelamento do Ministério da Cultura que se tornou uma secretaria ligada ao Ministério do Turismo e estamos falando, também, do universo do trabalho como uma institucionalidade social que recepciona de forma limitada os fazeres artísticos e culturais.

O cotidiano musical, no entanto, é vivenciado profundamente a partir dos saberes e aprendizados muito parecidos com os modos da cultura popular, ou seja, a vivência do(a) brincante. Esse sentimento festivo e multidisciplinar é colocado por Ythalla Maraysa em sua explicação sobre como a música entrou em sua vida:

A música, na minha vida, ela…assim, desde cedo, eu tive muita influência da minha mãe na música, mas com um instrumento foi a partir de 2017; que eu conheci vários amigos que tocavam instrumentos e que acabei me soltando e o pessoal dizia ‘pega um instrumento, pega outro instrumento’, aí eu acabei pegando e brincando. Nessa brincadeira, sabe? Foi mais uma brincadeira. E, hoje em dia, também estou nessa brincadeira não de uma forma profissional, porque eu sou estudante do curso de design e fotógrafa. Aí, eu entro mais, assim, pra brincar mesmo. Eu gosto muito dessa coisa da rua e de experienciar sons, né? As meninas me chamaram e eu acabei vindo brincar com elas, eu sempre venho aqui tocar com elas na rua”.

Podemos entender a ideia da “brincadeira” muito ligada à de “liberdade”, mencionada por Joyce Noelly, mas, sobretudo, ativada pela amizade como meio de interação e abertura de oportunidades. O prazer na dança, na troca de instrumentos, nas formas de acompanhar o compasso e as risadas quando alguma tocadora comete um erro ou esquece a canção, tudo isso se sobressai na sintonia afetuosa que as quatro colocam em movimento.

É uma experiência bem diferente porque é tudo muito novo, porque estão passando muitas pessoas e os sons mesmo lhe estimulam. Sensorial, né? E você fica mais solto, você não fica com tanta vergonha. Nos primeiros dias, você fica um pouco com vergonha, mas depois você se solta. É como se fosse uma escola, a rua é uma escola. Pra mim, eu vejo assim. Para aprender os instrumentos”.

Por meio desta potência das ruas de Caruaru vistas como uma escola popular, quatro jovens mulheres reverberam a transmissão do saber musical, a representatividade feminina e as relações entre ação social organizada/coletiva e a arte como práticas efetivas para trocas solidárias e participativas.

BOA LEITURA

GOFFMAN, E. “Ritual de interação: ensaio sobre o comportamento face a face”. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

MOREIRA, Fayga; BARROS, José Márcio. “Diversidade e identidades: fronteiras e tensões culturais no espaço urbano”. Políticas Culturais em Revista, 2(2), p. 50 – 59, 2009.


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