Los Muchachos em Caruaru


Por Theia Produtores Associados em 23/jan/2021

Nosso projeto segue sua itinerância e adentraremos as vivências que marcaram nossa passagem pelo Agreste pernambucano em Novembro de 2019. A cidade de Caruaru é o próximo campo empírico sobre o qual vamos nos debruçar com trajetórias artísticas, práticas sociais e situações particulares que a caracterizam, atualmente, como um cenário para a música nos espaços populares. Chegamos ao município com expectativas alimentadas pelo reconhecimento nacional que as suas expressões artísticas têm há décadas, incluindo o ciclo junino que atrai uma grande quantidade de visitantes. Na referida macrorregião estadual, Caruaru exerce uma forte relação entre atividades comerciais e manifestações da Cultura Popular e tem, nos últimos anos, aprofundado sua complexidade urbana com a expansão imobiliária. Assim, podemos vislumbrar uma série normatizações das relações sociais que permeiam os espaços públicos e os desafios que os músicos das ruas enfrentam em suas performances e interações.

Em meio a esta conjunção, iniciamos percorrendo as ruas centrais onde lojas e outros setores de serviço impulsionam a maior parte do intenso movimento. Na Praça José Martins, mais conhecida como Praça do Banco do Brasil, encontramos e conhecemos os irmãos Charles e Jhonny Guisbert, músicos e cantores peruanos, que há um bom tempo se apresentam como “Los Muchachos” nas ruas de várias cidades brasileiras. Naquele dia, 13/11/2019, a dupla tomou conta do centro da praça e aglutinou uma boa quantidade de espectadores que acompanhavam a performática apresentação com um repertório de salsas, rumbas e boleros.

Executando canções populares dessas vertentes da música latino-americana, Charles e Jhonny fazem da comunicação com os transeuntes uma marca da apresentação que é preenchida com a dança e a abertura para que as pessoas participem e se divirtam. Esse é um posicionamento corporal e estético quase cênico, teatral, que nos ajuda a perceber um método de defesa da imagem artística profissional para combater os preconceitos, sobretudo, das instituições públicas de vigilância – como pudemos presenciar em Caruaru –, além de diferenciar Los Muchachos dos outros artistas e grupos que encontramos.

Os irmãos vieram do Peru para o Brasil há mais de quinze anos e já passaram pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará até a Região Norte (Pará e Amazonas). Entre os anos de 2005 e 2006, instalaram-se no Recife (PE) onde fundaram a banda “Los Muchachos” com alguns amigos. Circunstâncias pessoais de cada integrante puseram um fim na formação do grupo e os dois irmãos assumiram o mesmo nome artístico, posteriormente, como uma dupla que continua percorrendo diversas cidades pelo país. As memórias sobre a temporada na capital pernambucana revelam um poco do início da prática nas ruas, como nos conta Charles: “encaramos as praças, as feiras, super mercados, lugares que a gente possa expressar nossa arte, nossa música; que nosso trabalho no Brasil, em si, é música”.

A música, aliás, tem importância em suas vidas desde a infância, quando aprenderam a observar o próprio pai tocando violão e cantando em casa para animar festas da família. Na juventude é que iniciaram o aprendizado musical propriamente dito e a possibilidade de profissionalização começou a ser traçada e definida pelo desejo de “alegrar as pessoas”. Com esta perspectiva, Charles procura justificar e descrever sua atividade como artista nas ruas:

Eu noto muita gente que não tem condições de assistir um palco gigante e tem artistas de rua que expressam e fazem, até, muito bonito. Então, o chamado povão, o trabalhador do dia-dia, se alegra com isso. Vê uma opção de alegria no dia-dia do trabalho, do estresse, (…). E chega um artista de rua, expressa seu talento, faz aquela roda, todo mundo assiste. Então, é importante o artista de rua no meio de uma praça, de um calçadão, numa feira, é uma alegria opcional para o povo”.

Assim, as apresentações de Los Muchachos, naturalmente ligadas à dança e à venda dos CDs e DVDs gravados de forma independente, são compreendidas e definidas, por eles mesmos, como uma diversão acessível a todos, como um momento de lazer produzido para a diversidade do público por dois artistas que entendem o cotidiano dos transeuntes. Jhonny, que assume diretamente a comercialização dos produtos, destaca, também, uma dimensão afetiva e de rememoração coletiva a partir do repertório da dupla: “Cantamos músicas, por exemplo, de Bolero e fazemos uma ‘viagem’ porque é uma música que não se canta mais, são músicas velhas dos anos oitenta, setenta, e nós transmitimos essas melodias. Resgatamos essas músicas e entregamos ao público. O público aceita muito bem. Lógico, viaja na música até o passado. (…). Interessante porque não se canta mais no rádio e na televisão”.

Percebemos, então, que não é por acaso que a maior parte do público que se acomoda na praça para curtir o show é formado por homens e mulheres idosos que sentam nos bancos ou fazem um círculo em torno dos artistas e sacam os celulares para registrar o momento. Charles, que se destaca como cantor e dançarino, mantém um diálogo constante com as pessoas e aceita que os mais animados e extrovertidos se aproximem para dançar. Toda a situação se constitui como uma atuação outsider que vislumbra uma semelhança com espetáculos de palcos tradicionais. Por isso, a dupla carrega equipamentos que expandem o alcance da performance e que a torna um atraente entretenimento de rua.

O uso de caixa de som amplificadora, mesa de som, microfone e cabos ligados a fontes de energia da redondeza, facilita a identificação de uma postura artística e de valorização dos produtos cuja venda garante boa parte de suas rendas mensais. Tudo é facilmente montado e, depois, recolhido pela dupla, o que denota a experiência de artistas sempre em trânsito. No entanto, essa é uma organização estrutural móvel que pode ser alvo de agentes dos poderes públicos que controlam os usos das áreas urbanas. Em Caruaru, fomos testemunhas desse tipo de abordagem e registramos a aproximação de fiscais da Secretaria de Ordem Pública do município. Sem sermos incomodados, continuamos com nossa câmera ligada, mas mantivemos uma certa distância para que os agentes e os próprios artistas não se sentissem intimidados ou desconfortáveis por qualquer motivo.

No referido contexto, a Prefeitura estava implementando um forte controle das atividades de vendedores ambulantes, conhecidos como camelôs, em diversos bairros. O fato de Charles e Jhonny exporem os CDs e DVDs em uma mesa que servia de banquinha para vendas fez com que os fiscais atentassem para uma suposta “irregularidade” da ação na praça; ou seja, os artistas estavam sendo colocados na mesma categoria de comerciantes não autorizados. Este entendimento é facilmente contestável já que o trabalho dos artistas é completamente diferente: não ocupam uma área permanentemente e oferecem uma apresentação musical. Contudo, os dois irmãos dialogaram tranquilamente com os fiscais e atenderam à ordem de encerrar a atividades e desmontar os equipamentos.

Enquanto a conversa com os fiscais se desenrola em tom cordial, um jogo de contradições se desenvolve. Ao mesmo tempo em que Charles dialoga com os representantes do poder público, Jhonny consegue continuar a vender os CDs de forma discreta. No exato momento em que os funcionários municipais explicam os impedimentos para a apresentação, algumas pessoas que apreciavam o show se aproximam para parabenizar a dupla de cantores. Em uma única cena, o público espontâneo demonstra sua aceitação aos artistas enquanto os representantes da Prefeitura de Caruaru exercem uma censura fruto da incompreensão diante da lógica independente do músico e/ou cantor dos espaços populares.

Durante toda a situação, fica claro que a intervenção institucional é motivada pela venda dos CDs e DVDs; ou seja, torna-se implícito que a dupla teria maior liberdade de atuação caso não investisse em seus produtos. Este posicionamento da gerência pública ignora completamente as práticas dos músicos para constituir uma rede de parcerias e cooperações que, consequentemente, os ajuda a conquistar o respeito das pessoas por meio da interação imediata. Observamos, também, a tentativa de amenizar a proibição com o argumento de que os dois irmão podem buscar autorização da Secretaria de Cultura da cidade para obterem a liberação de apresentação nas ruas e outras áreas coletivas. Este é mais um exemplo de medida que não atende em nada ao cotidiano e à lógica de trabalho dos artistas. Estes últimos estão sempre se deslocando entre cidades, estados e até países, e, por isso, encontram-se impossibilitados de se prenderem à burocracia e à avaliação das instâncias de poder vigentes.

Considerando estas incompatibilidades e divergências, tentamos entrevistar os fiscais que se encontravam na praça e, infelizmente, estes não se disponibilizaram a participar do nosso registro ou dar maiores esclarecimentos que possam ser incluídos em nossa pesquisa. Em toda a circunstância, ficou claro que os dois irmãos não demonstraram nenhum espanto diante do argumento de proibição; pelo contrário, estão muito acostumados com a situação que não é rara em suas andanças pelo país. No entendimento de Charles, por exemplo, a Arte de Rua é uma atividade que “muitas autoridades não veem como arte”. Assim, a autodefesa ou autolegitimação como artista é uma necessidade cotidiana que, ainda nas palavras de Charles, ganha a forma de um discurso de distinção: “O artista trabalha na rua, nós trabalhamos na rua, mas não somos da rua, não moramos na rua. A gente tem despesa de dormida, de alimentação, transporte e, às vezes, certas autoridades, infelizmente, não entendem isso. (…). Eles confundem o artista de rua com camelô, como um empecilho no meio da praça ou outra coisa que está atrapalhando”.

A busca por tal diferenciação em relação a outros indivíduos que permeiam os cenários urbanos assinala, em mais uma situação da nossa pesquisa, o quanto o artista, que leva a música aos Espaços Populares, precisa desviar dos estereótipos sociais que pré-julgam e consideram o seu trabalho em uma condição irregular ou não profissional. Em resumo, precisa, constantemente, sinalizar que sua ação não representa um problema social a ser reprimido.

Em sua oportunidade de fala, Jhonny declara que “a prefeitura deveria nos apoiar. (…). O artista tem que viver de alguma coisa, né? Da colaboração das pessoas. A pessoa é voluntária e dá dois Reais, cinco Reais. Tem que vender alguma coisa e, assim, temos o trabalho: o CD e o DVD”.

A partir da nossa pesquisa, podemos considerar que, além da sobrevivência, os/as instrumentistas, bandas, cantores/as nos Espaços Populares procuram, também, formar o público e orientá-lo na valorização das expressões musicais que transitam por várias circunstâncias de exibição e remuneração. Tornam-se, contudo, produtores de manifestações musicais negligenciados pela maior parte das administrações públicas em seus planos de cultura e gerências para o incentivo às artes, mesmo em cidades ou Estados federativos que promovem a imagem de desenvolvimentismo local utilizando, também, seus artistas e ciclos festivos.

Acreditamos, dessa forma, que é urgente a mudança de visão diante dos artistas nos espaços públicos para que se possa compreender como estes sujeitos sociais promovem uma cadeia e uma economia cultural que atinge uma gama de serviços por eles utilizados e que, principalmente, promovem situações de educação popular que compõem nossas paisagens e interações citadinas.

Boas leituras:

BECKER, Howard S. “Profissionais integrados, Mavericks, artistas populares e naïfs”. In: Mundos da Arte. Lisboa: Horizonte, 2010, pp. 196 – 228.

RIBEIRO, Fábio H. G. “Abordagem sociointerativa da performance musical – reflexões sobre redes sociointerativas da cultura popular em João Pessoa – PB”. Revista Vórtex, Curitiba, v. 7, n. 1, 2019, pp. 1 – 28.


Incentivo