Forró Parar pra Tomar Uma


Por Theia Produtores Associados em 07/set/2020

O encontro da sanfona com a zabumba e o triângulo se popularizou massivamente no universo do Forró. A união dos três instrumentos e de seus tocadores é uma imagem que se destaca, também, no ideário de autenticidade que, muitas vezes, impulsiona as discussões sobre a história e os desdobramentos sonoros do ritmo nordestino. Ao longo do anos, tornaram-se muito conhecidos, portanto, os chamados trios “pé-de-serra” que se multiplicam pelas cidades pernambucanas, principalmente, durante o ciclo junino.

Independente do debate entre tradicionalismos e atualidades no mercado musical, podemos perceber que o formato do trio pé-de-serra mantem o Forró presente nas ruas, praças, feiras livres, transportes coletivos e muitos outros lugares públicos que estamos, no caminhar da nossa pesquisa, chamando de Espaços Populares. A facilidade de deslocamento dos músicos com seus instrumentos também faz os trios percorrerem diferentes cidades e festejos e se adaptarem à circunstância de arrecadar colaborações nas ruas “passando o chapéu” ou de atenderem aos convites para se apresentarem em eventos privados mediante pagamento de cachê. Essa é a versatilidade de práticas e interações com a qual nos deparamos quando conhecemos o trio Forró Parar pra Tomar Uma – formado pelo cantor e tocador de triângulo Bento, o sanfoneiro Cido do Acordeon e o zabumbeiro Vandeilson Neves – na cidade de Petrolina no dia 22 de Outubro de 2019.

O nosso registro ocorreu no bairro Areia Branca, subúrbio petrolinense, no início da noite, quando a temperatura local se torna mais amena e a rua mais convidativa. Encontramos o Forró Parar pra Tomar Uma no bar Caldinho Ele e Ela que já contava com a presença de alguns clientes. O estabelecimento se localiza no canteiro central de uma movimentada rua, sua estrutura física é aberta e as mesas, distribuídas a frente do balcão de atendimento, estão rodeando uma árvore de ampla copa que cobre quase todo o espaço ocupado. De um lado e do outro da pista, muitos carros passam e os ruídos de motores e buzinas são intensos. Tais características nos fazem confundir o bar com a rua já que não há uma definição precisa dos seus limites, o que torna natural a aproximação dos músicos para tocarem forró e pedirem um retorno financeiro espontâneo à clientela.

O cantor e tocador de triângulo Bento é quem nos conta um pouco da trajetória do grupo. Ao procurar ingressar no mundo dos forrozeiros, Bento comprou uma zabumba e começou a ter aulas para aprender a tocar. Em seguida, o exercício cotidiano o levou a cantar e, como ele mesmo menciona, a se “especializar no forró pé-de-serra”. Assim, a música foi ganhando, aos poucos, importância na sua vida. Essa casualidade está presente em muitas situações narradas por Bento, como em sua lembrança sobre o surgimento do nome do grupo.

Junto a músicos amigos, Bento acompanhou a viagem de um time de futebol que estava indo de Petrolina até o Recife de ônibus. A pedido do empresário da equipe, Bento e seus amigos tinham a função de tocar forró, até o destino final, sem deixar ninguém dormir. Abastecidos com uma caixa de cachaça Caribé, 12 litros ao todo, os passageiros acabaram com todo o estoque da bebida ainda muito distantes do fim da excursão. Então, logo pediram ao motorista que fizesse uma parada na estrada. Como nos conta Bento, o motorista perguntou – “Parar para quê?” e todos responderam – “Parar pra tomar uma”. Assim, o grupo assumiu seus momentos de boemia e amizade e passou a se chamar Forró Parar pra Tomar Uma.

Inicialmente, o objetivo com a música na rua era justamente o de conseguir um dinheiro extra para “tomar uma” e, dessa forma, o trio foi estabelecendo uma tática para chegar nos bares e poder tocar o forró a partir de um acordo feito ocasionalmente com os donos dos estabelecimentos:

A gente não tem um roteiro certo. A gente sai de casa com o intuito de tocar. Aí, não tem local específico. Eu saio de casa, a gente coloca um dinheiro no bolso, abastece o carro e sai nós três. Chega num barzinho, pega uma cerveja, estuda o ambiente e pede ao dono do bar para tocar um pouco. Geralmente, a gente fala que é violão. Aí, chega com a sanfona, toca a sanfona e passa o chapéu nas mesas. Nisso vem uma renda extra, uma renda muito boa que garante o sustento. Não vou dizer que não garante. Garante o sustento, é muito bom. Com isso, associou o que eu gosto de fazer com o dinheiro que é necessário. E fui buscando mais e mais. Fui buscando mais local pra tocar e estou aí até hoje.

Interessante como Bento apresenta uma estratégia cuidadosa para contar com a parceria dos bares. A menção inicial de que eles trazem um violão parece se adequar ao que os consumidores estão mais acostumados a ouvir nos estabelecimentos. A prévia observação do lugar faz o grupo perceber se ali irão conseguir uma boa quantia recolhida no chapéu de couro após a apresentação. Como nos foi narrado pelo tocador, a animação dos clientes é imediata ao perceberem que se trata, na verdade, de um trio de forró.

Especificamente no momento do nosso registro, os músicos se posicionaram ao lado de uma mesa com quatro clientes. Bento apresentou o trio com sanfona, zabumba e triângulo, anunciou que iriam tocar e perguntou se poderia contar com a colaboração de todos em qualquer valor. A receptividade foi imediata. Em meio às conversas, as pessoas, também, estavam envolvidas com o repertório do trio cheio de grandes sucessos como Espumas ao Vento de Accioly Neto, Tareco e Mariola de Petrúcio Amorim ou Caboclo Sonhador de Maciel Melo. Todas são canções românticas – que falam de desilusões amorosas ou sobre um tipo de orgulho em relação à região de origem – e que são há anos amplamente tocadas nas rádios e gravadas por diversos intérpretes. Com tal percepção sobre o gosto do público, o Forró Parar pra Tomar Uma escolhe as músicas com o objetivo de envolver a memória afetiva das pessoas e interagir com elas de forma descontraída, sempre abertos a brincadeiras e camaradagens.

Na mesa mais próxima aos músicos, os consumidores cantavam as músicas e batiam palmas ritmadas para acompanhar, por exemplo, a batida da zabumba ou do triângulo. Estes dois instrumentos fazem a base para que a sanfona possa desenvolver maior variação melódica, por exemplo.

Dentre os quatro ocupantes nas cadeiras, conversamos com o agricultor Cleiton Diniz sobre suas impressões acerca do trabalho do trio nos Espaços Populares. Em sua opinião, a iniciativa dos três tocadores “alavanca mais o nosso interior, é uma cultura bonita”. Com a mesma finalidade, ele comenta sobre a música nas ruas: “nossos turistas não conhecem muita coisa disso, do nosso interior, e eles se familiarizam melhor com isso, entendeu?”. Ou seja, a recepção que o grupo tem nos bares e nas ruas está, muitas vezes, justificada por uma noção de musicalidade “do interior” que é comumente identificada como “nossa” ou pertencente a uma linhagem “autêntica” referente ao Nordeste rural. Por mais que o repertório do trio seja de músicas relativamente recentes – em comparação a clássicos de Luiz Gonzaga e João Silva, por exemplo – e amplamente executadas nas mais diferentes estruturas de espetáculos e shows, a trindade da zabumba com a sanfona e o triângulo reveste a sonoridade com uma ideia de passado ou de “cultura de raiz”.

O saudosismo implícito na situação está ao lado, também, da simpatia nutrida pelos músicos. Eles sempre estão sorridentes, cumprimentam conhecidos, aceitam as ofertas de doses de cachaça e acenam de volta para motoristas de carros particulares que passam em frente ao local. Assim, podemos reconhecer uma das estratégias interacionais com a qual o músico popular dissolve o distanciamento entre artistas e público nas ruas, bares, praças, feiras livres, transportes coletivos, etc. No caso do Forró Parar pra Tomar Uma, o resultado dessa ligação, ou sintonia, com as pessoas se traduz, também, na quantia de dinheiro arrecadada após a apresentação. O próprio cantor Bento admite que o trio não encontra dificuldades para ser bem recebido por onde passam:

“Sem sombra de dúvida. É muito bom, muito gratificante. A gente fala que é violão, mas quando vêm que é a sanfona fica muito mais aconchegante. O pessoal participa da festa, do canto. A gente faz o pessoal participar do nosso forró e isso integra mais, a gente fica mais à vontade, mais solto pra tocar e sem preocupação. Volta pra casa satisfeito com o que fez na rua. Além do retorno financeiro que eu falo, a gratidão de tocar e sair bem…eu vou dizer bem simplificado, gratificante com o dinheiro e com o que eu fiz naquele ambiente. Deixando o espaço aberto para voltar”.

Ou seja, caso os músicos não conheçam o dono do bar e os clientes nas mesas, torna-se necessário o procedimento de aproximação que o grupo faz com calma, diálogo e ganhando, primeiro, a confiança dos que estão presentes. Bento aborda, também, como a naturalidade dos diálogos coloca o músico e o seu admirador no patamar de amigos. Algumas relações fraternas podem ganhar força e trazer benefícios para o próprio grupo:

“Quando a gente toca, como eu te falei, a tocada deixa muita amizade. Muita amizade, e esses instrumentos, que nós temos aí, foi tudo doação. A sanfona de R$12.000,00 foi doação de um empresário. A zabumba foi doação. Triangulo, som, essa coisa toda. Pra gente tocar, não tinha som, não tinha instrumento bom. E, através da gente tocando nos barzinhos, a gente foi conhecendo as pessoas, conhecendo os empresários e eles fizeram essa doação em troca de nada! Só em termos de ver a gente tocando, ficar gratificado por esse forró que a gente faz na rua, nos barzinhos, e assim…eles nos convidam…mesmo eles doando os instrumentos, eles nos convidam pra tocar, mas pagam o cachê normalmente. Não desconta nada, não tem nada a ver com a doação que ele fez”.

Este é um tipo de suporte ou ajuda que, sem dúvida, incentiva a profissionalização do trio pé de serra na rua ou nos espaços fechados de Petrolina e cidades próximas. Proporciona estrutura técnica em algumas apresentações e expande a visibilidade e o reconhecimento da atuação do Forró Parar pra Tomar Uma como possibilidade de subsistência por meio da música. Com tantas histórias e lembranças, Bento se recorda de apenas uma situação em que se viu impedido de trabalhar na rua com os equipamentos de que dispõe:

Uma vez, no carnaval. Coincidiu com o carnaval…porque aqui puxa muito pra o Axé por ser colado com a Bahia, Juazeiro e Petrolina, e começou a gente a introduzir o frevo e o forró. E teve uma ocasião em que eu levei um som mais potente e começamos a tocar frevo e forró ao mesmo tempo e o pessoal veio pra o nosso lado, o pessoal que gosta da cultura pernambucana. E foi impedido, pediram para tirar o som. Mas foi só dessa vez, o único problema foi esse no carnaval.

Exposto como uma exceção, o episódio reforça a relação que a população local tem com parâmetros de uma musicalidade tradicional seja de uma perspectiva interiorana ou de pertencimento à “cultura pernambucana”. De forma geral, o trio Forró Parar pra Tomar Uma defende, em sua prática artística, a liberdade de existência nas ruas. Bento confessa, por exemplo, o entendimento de que as ruas, de um modo geral, estabeleceram os princípios que, posteriormente, foram adaptados aos palcos fechados:

Essa parte é interessante porque sem isso [arte na rua], eu acho que…todo teatro começou na rua, eu acho. Eu acredito que sim. Eu não tenho um estudo formado, mas acredito que foi na rua que começou essa coisa para depois levar pro teatro, assim, pro ambiente fechado. Eu sei que, na rua, eu me sinto muito bem. Talvez, se fosse um espaço fechado, eu não teria tanta força de vontade de cantar, de me expressar, como na rua. Na rua, eu me sinto muito bem, muito à vontade.

Em resumo, como representante da música nos Espaços Populares, o trio Forró Parar Pra Tomar Uma segue inventando os “palcos” urbanos e criando as vivências do lugar e do tempo partilhadas espontaneamente e ao sabor das surpresas que as noites nos bares podem reservar. Sendo um exemplo, sobretudo, de uma interessante estratégia que relaciona a construção de confiança e de amizades com o senso de humor nas interações boêmias.


Incentivo